segunda-feira, 18 de março de 2024

Cafés (No tempo dos); Nuno Júdice

 - poema - lista, de Autores...; sublinhados acrescentados

 NO TEMPO DOS CAFÉS

Entreabri a porta, sem saber o que iria encontrar. As mesas
estavam cheias, e quase não se ouviam as conversas com o ruído
das chávenas, das vozes que vinham dos bilhares, dos gritos de
quem chamava os criados que passavam sem se importarem 
com ninguém. Era um tempo a preto e branco, e talvez fosse 
por isso que o ruy belo olhava à volta a ver se conhecia alguém, 
o alexandre pinheiro torres espreitava para o relógio apenas
para confirmar se estava na hora certa, o augusto abelaira
discutia a literatura francesa com os que preferiam 
a literatura inglesa, como o carlos de oliveira que lia
as irmãs bronte sem se decidir por nenhuma 
delas. Não sei de que lugar da eternidade me falam
como se eu ouvisse o que têm para me dizer. Queria era
perguntar ao ruy o que irá fazer no regresso a madrid, agora
que madrid perdeu a movida, ao alexandre se ainda sabe 
alguma coisa da leonor de almeida, perdida nalgum recanto
da dinamarca, e ao carlos se já escolheu a qual das bronte
irá emprestar a casa que construiu na finisterra. E 
queria empurrar a porta do café, passar por entre a chuva
de meteoros, evitar o buraco negro onde o herberto
helder está escondido, só para que ninguém lhe pergunte
nada, aproveitar para perguntar ao cardoso pires porque
é que nunca tinha escrito um poema, ao contrário
do pessoa, que não era da predilecção do josé gomes
ferreira que, na realidade, ainda tinha o remorso de não 
se ter declarado à florbela. E o que me começa
a fazer falta é o caderno de pautado francês da luiza neto jorge,
a forma pausada como a fiama falava do bernardim,
como se tivesse estado com ele no seu jardim, e aquele horizonte
para lá do tejo onde ficava a outra margem em que ouvi cantar
o zeca afonso com a polícia à porta


Nuno Júdice, Uma colheita de silêncios, 2023, pp. 19-20

sexta-feira, 15 de março de 2024

«a memória dos sabores» (Paulo Moreiras)

 - [leitura «intercalada»; de rápida natureza, sobretudo pelas manhãs, pelos transportes [...]; alcançada a p. 67 [de 226]

RECORTE(s):
    Com o propósito de aferir a qualidade do seu palato, Domingos Rodrigues desenvolveu alguns exercícios para Saturnino. Não tardou a descobrir [...] que o filho evidenciava um apurado sentido do gosto, capaz de decifrar os nove sabores que os filósofos preconizavam existir: os três cálidos, os três frios e os três temperados. [...] Não havia prato, por mais complexo que se apresentasse, em que Saturnino não descortinasse todos os ingredientes e especiarias [...] Se fosse carneiro estufado, por exemplo, saboreava um pouco da carne e do caldo, [...] e logo enumerava o meio arrátel de toucinho, as duas cabeças de alho, o marmelo cortado em quartos, as duas maçãs,  a canela, a pimenta, o gengibre, o cravo-da-índia, a noz-moscada, as duas folhas de louro e o sal necessário, sem esquecer de referir o pequeno golpe de vinho, de vinagre e de sumo de limão [...] tão fundamentais para enriquecer os sabores e mundificar os aromas. Até mesmo a partir de um simples pedaço de marmelada comum Saturnino conseguia decifrar se lhe haviam adicionado um tanto de âmbar ou de almíscar. Bastava-lhe provar as iguarias somente uma vez, que logo a memória do seu sabor ficava guardada como se fosse gravada em pedra. Um prodígio da sua faculdade de alma, virtuosa tesoureira do espírito.

Paulo Moreiras, Os dias de Saturno, pp. 65-66

sábado, 13 de janeiro de 2024

«A laranja de Nafarros», M. E. C.

- RECORTE(s) da crónica de hoje, de MEC, no «Público»:

[...]Quando o meu pai, Joaquim, comia uma laranja, até as janelas tinham vergonha. Fugíamos para não ouvir o ruído hidráulico dos gomos a serem lentamente triturados, numa lenta mastigação que o meu pai tinha roubado aos ruminantes do Ribatejo.
[...] À mesa, gosto de abrir as laranjas como um cirurgião plástico, dilacerando a casca com perícia, para expor os gomos e decidir como vai ser o corte final antes de entrar para a boca. [...]

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Barman e Doutor

 - a «prancha» de hoje, do «Bartoon», de Luís Afonso também poderá ser «reenviada» para aquele que trabalhou como Barman até 4 de DEZ. de 89; após isso, a LIC., em 9192, o MESTR., em 0205, que «furou» o CONG. no seu início (em 06), e a «morte na praia» do 8.º Degrau (lá para 2021...)...; claro que «metia menos a colher» do que este Boneco-Figurão...

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Babette (A festa de)

 - neste caso, R. acha que gosta mais do filme do que do Conto [1958] - OU será que precisa de reler este último?; no Inventário «A volta ao Mundo em 100 Livros»,  de A. Lucas Coelho, o Episódio n.º 89, de 29-10

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Mercearia e Tasca (Ernaux)

 RECORTE(S):

     Um café de clientes habituais, bebedores regulares de antes ou depois do trabalho, cujo lugar era sagrado, equipas de estaleiros, alguns clientes que teriam podido,  com a sua situação, escolher um estabelecimento menos popular, um oficial da Marinha aposentado, um fiscal da Segurança Social, gente pouco senhora de si, portanto. A clientela dos domingos, famílias inteiras para tomar um aperitivo, laranjada para as crianças, por volta das onze horas. À tarde, os velhos do asilo em liberdade até às seis, alegres e ruidosos , entoando canções populares. (...) era evidentemente «uma tasca» para aqueles que nunca teriam posto lá os pés. À saída da fábrica vizinha de roupa interior, as jovens vinham festejar os aniversários, os casamentos, as partidas. Compravam na mercearia pacotes de biscoitos de champanhe, que em seguida rebentavam ruidosamente, e fartavam-se de rir agachadas debaixo da mesa.
    
Annie Ernaux,  Um lugar ao sol seguido de Uma mulher, 2022, p. 39
[outros Recortes: AQUI e AQUI]

segunda-feira, 3 de julho de 2023

«o cheiro avinagrado da massa das farinheiras» + «o gosto da nata», José Luís Peixoto

 - iniciada hoje, na «Carreira do 30» (da PICH. a Picoas), esta bem estruturada Ficção, em curtos «capítulos», com a Voz Narradora, ora de 1.ª ora de 3.ª Pessoa Verbal, em diferentes Tempos, «fragmentariamente»; atingida, ao final da manhã, a p. 65

- «perspectiva» de narrador com 9 anos no excerto escolhido, logo de página inicial:

[...] Quando terminei a primeira ronda, estavam as mulheres no começo de encher as farinheiras. O cheiro avinagrado da massa das farinheiras impregnava a divisão.[...] Quando voltei da segunda ronda da distribuição, mãos agradecidas a receberem as encomendas, olhos regalados a apreciarem a carne, a textura da carne sobre a couve, a minha mãe esperava-me com a vasilha do leite, tinha essa intenção planeada desde sempre. Depois do morno do sebo e da palha, depois do olhar mal iluminado das vacas, [...] cheguei com o quarto de litro de leite, mais um ou dois dedos por paga de bom freguês. Foi ao entregar a vasilha que a minha mãe me prometeu a nata. Eu conhecia já o desenvolvimento desse gesto, não era a primeira vez. [...] 

José Luís Peixoto, Almoço de domingo, p. 22 

sexta-feira, 16 de junho de 2023

«Matança OU a Faca como Espada», «Signo Sinal»

 - S. S. será devolvido à BiblioPenha até dia 29; de manhã, na ESP DEL + AGO, atingiu-se a p. 88

- [a Matanças, terá D. assistido a uma, no Vau (?) e a quantas no Monte da  Marechal ?]

[...] - Girou já para casa!
e nós disparámos a correr, voltámos logo depois. Silêncio de novo, só o grunhido do porco, o respirar forte dos homens. O matador erguia contra a luz a longa faca triangular, passava-lhe a mão no fio. Estava só, alheio a tudo. Vejo-lhe a figura alta, enorme. Só. Sacerdote antiquíssimo , sagrado de gravidade. Olhava-o com terror, eu, ele não via ninguém. [...] O sacerdote extático, subia-lhe a cabeça até à noite.  Imóvel, nem olhava. Tinha um poder oculto e imenso, concentrava-se todo na sua grandeza. Meu pai andava á volta do porco, dava instruções. [...]
 - É amarrarem-no à tábua
mas o matador, grave, disse que não. Era uma violência, havia a dignificação da vítima e de nós, amarrá-lo era impuro. Nas mãos firmes dos homens, pregado à tábua, esperneando frenético. [...] Transido, eu, os olhos dilatados de terror. Então o matador avançou. Ergueu ao alto a faca como uma espada, traçou na fronte, com ela erguida, o sinal da cruz. E dobrando-se para o animal, raspou-lhe ligeiro um sítio no pescoço. [...]
                                          
                                         Vergílio Ferreira, Signo Sinal, Bertrand, 1979, p. 78

domingo, 11 de junho de 2023

«cozido de couve» (nesse dia só havia)

 - outro (s) RECORTE(S) da leitura em curso:

     Na casa da Isora a comida era uma mixórdia. Arroz amarelo com coxas de frango com molho com peixe salgado com batatas com ovos e batatas com cebolas, reutilizadas das batatas guisadas do dia anterior, com rancho com cozido de agrião com batata com carne, tudo junto. Na casa da Isora a comida era uma mixórdia, mas nesse dia não, nesse dia só havia cozido de couve. [...] O cozido de couve já estava na mesa a fumegar. Eu não gostava nada de cozido de couve e muito menos se tivesse gofio por cima. Mas a Isora adorava e se ela metia gofio por cima eu também. [...] A Chela punha sempre à Isora um prato mais pequeno do que o meu porque dizia que a isora comia pelos olhos e que era preciso controlá-la, pois caso contrário desordenava-se-lhe a fome. A Isora acabou o cozido rápido rápido, e depois começou a ver como é que eu comia o meu. [..]

[sublinhados acrescentados]

Andrea Abreu, Pança de burro, Bertrand, 2023, pp. 87-88

sexta-feira, 2 de junho de 2023

«Todo o bacalhau é espiritual» (M. E. C.)

 - toda e qualquer a referência ao «Bacalhau Espiritual» remete R. para a C. da C. (78-80), para a Chefe Clot. [...] [«e o resto não se diz»]
RECORTE(s) da Crónica de hoje - «A conversa mais portuguesa»:
[...] Assim se dá origem à conversa mais portuguesa que é humanamente verificável:
"Isto está óptimo, mas podia ter mais um bocadinho de bacalhau, não?"
"Cala-te, que levou imenso bacalhau! Foi quase uma posta por patanisca, carago!"
[...]
Porque é que o bacalhau desaparece? Porque é que Deus deixa acontecer coisas horríveis? Porque é que a Milú não gosta do Zé Tó?
O bacalhau desaparece porque é um acto de magia. Aquilo era só um peixinho de lombinho aguado, feito para cozer e dar aos convalescentes. A verdade é que o bacalhau "não está lá". Foram o sal e o sol e a secura extrema que deram uma impressão de solidez e de peso.
Todo o bacalhau é espiritual. Estamos em constante negação dessa verdade. [...]
Miguel Esteves Cardoso, «Público», 02-06-2023

sábado, 13 de maio de 2023

Confinado ( a cozinheira do), Carlo Levi

 [Giulia] Acendia o fogo à maneira camponesa, com pouca lenha, e acendia os troncos só de um lado, juntando-os à medida que iam ardendo. Sobre esse fogo cozinhava, com os escassos recursos da terra, pratos saborosos. Preparava as cabeças das cabras  a reganate, numa panela de barro, com as brasas por baixo e a tampa por cima, depois de ter embebido os miolos com ovo e ervas aromáticas. Das tripas fazia os gnemurielli, enrolando-os como novelos à volta de um pedaço de fígado ou de gordura e de uma folha de louro, e deixando-as a tostar sobre as chamas, enfiadas num espeto: o cheiro a carne queimada e o fumo cinzento espalhavam-se pela casa e pela rua, anunciando um delícia bárbara. [...]

Carlo Levi, Cristo parou em Eboli, Livros do Brasil; pp. 102-103

quarta-feira, 8 de março de 2023

Experiências culinárias (Franco-Chilenas)

 [pelos finais do século XIX, princípios do XX ?]

Em dezembro, encomendavam-se especialidades francesas e a casa enchia-se de caixas de abóboras e de empadões de vitela, de gaiolas repletas de perdizes vivas e de faisões depenados, já pousados na sua travessa de prata, cujas carnes estavam tão endurecidas pela viagem que à chegada não se conseguiam cortar. As mulheres entregavam-se então a experiências culinárias inverosímeis que pareciam mais próximas da feitiçaria que da gastronomia. Misturavam às velhas tradições das mesas francesas a vegetação da Cordilheira, impregnando os corredores de odores misteriosos e de fumos amarelos. Serviam-se empanadas recheadas de morcela, coq-au-vin, pasteles de jaiba com queijo maroilles, e reblochons tão fedorentos que as criadas chilenas pensavam que provinham sem dúvida de vacas doentes. [...]  [negrito acrescentado] 

Miguel Bonnefoy, Uma herança, Asa, 2023, p. 14

sábado, 28 de janeiro de 2023

Pão OU «o vagar do Alentejo»

 - entre 78 e 85 ia-se ao Monte da Vinha, ora de «Expresso» + Carreira Local 15') + «a pé» (20-25'), ora com alguém que tivesse carro (o cunhado Ch. E., OU o J. + a I. M....); a partir de 84, na R4 «Bordeaux»; à chegada, sempre o mesmo espectáculo: o pão da Marechal a sair do Forno, após uma inteira Noite de labuta:

Maria José Mestre mostra-nos como fazer pão alentejano em forno de lenha JOSÉ FERNANDES

-[o forno ainda não caiu, o Monte, claro, derrubado, há muito está; no Regresso, ah, no regresso...]

- imagem do «Fugas», de artigo sobre Beja («o Alentejo deixa-se descobrir com vagar»)

domingo, 22 de janeiro de 2023

Galileu em Veneza (jantar de)

RECORTE do excerto, em pré-publicação, no «Público» de  Galileu em Pádua — Os dezoito Melhores Anos da Minha Vida, de Alessandro de Angelis, professor de Física em Pádua e Lisboa. 

[...] Chegaram os criados com os pratos e aquele prometia ser o melhor jantar da vida de Galileu. Primeiro foram presenteados com uma entrada de canoce, um crustáceo da laguna, que Galileu achou delicioso. Comeu seis, e Nicolò convidou-o a regressar em Novembro no dia de Santa Catarina, quando as canoce estão no auge da sua forma. —​ El dì de Santa Catarin xe meio la canocia de la galina [dialecto veneziano: “No dia de Santa Catarina, é melhor a canoce que a galinha”].
      Depois as vieiras, o polvo, as sarde in saór [sardinhas em molho à base de cebola, pinhões e passas de uva, no dialecto veneziano]. Tudo regado por um vinho branco ligeiro e um pouco frisante, que normalmente não agradaria a Galileu, mas que naquele ambiente lhe pareceu um néctar dos deuses, melhor do que o melhor vinho Chianti. Por fim, chegou um grande peixe, um bransin [robalo, no dialecto veneziano], que na Toscana denominavam spinola. Foram os criados que o arranjaram. [...]


domingo, 15 de janeiro de 2023

«O Chef», Luís Afonso

- já saído no número 9 da «Granta»,  de Maio de 2017, ai intitulado «Chez Hippolyte», é agora republicado na Colecção «Contos singulares«, da R. d'Água, em «MicroLivro»; Páginas iniciais na Página da Editora: AQUI

Excerto nesta Casa: AQUI

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Nobre, «reencontrado» por Castro Mendes

[...] Eu já sabia da fama sulfurosa de um certo frade, que esperava a nossa excursão à saída da mala posta, no lugar de Casais Novos, freguesia de São Martinho de Recesinhos, lá onde se degustam os famosos "bolinhos de amor". Mas não esperava era ver sair de outra mala posta, pela mão de um homem vermelhusco e nutrido, que logo identifiquei como "o rubro e gordo Cabanelas" do poema, a figura franzina do jovem António Nobre, a caminho da casa de sua Mãe, ali perto no Seixo.
Tal como no poema, a mesa da estalagem onde nos encontrávamos tinha sobre as "toalhas brancas, honradas" uma boa oferta de doces e vinhos verdes. António Nobre, jovem caloiro de Coimbra, irritado e indisposto com as praxes, que já lhe tinham custado levar palmatoadas em público, e incomodado com o ar "bacharelático e funesto" que se respirava naquela Universidade, vinha ensimesmado e ausente, embora se sentisse aliviado com as férias familiares e manifestasse contentamento por reencontrar, ali nos Casais, a boa senhora Ana das Dores, que nos oferecia pão e doces e nos mostrava o magnífico fogão tradicional em que preparava todas aquelas vitualhas. [...]

domingo, 29 de maio de 2022

Mercearia B. + Bento dos Santos

 - muitos anos passaram; D., num dos «próximos» dias, irá deambular por lá - quotidiano percurso entre Out-Nov de 81 e 31 de Julho de 83; antes que venha a esquecer-se de vez, regista-se o Nome do «Chef», minhoto, sócio do EXEC. A. O., Antunes - que chamava «doutor» a D. [...]

- servia-se «depois das horas» = ceias após espectáculos, por exemplo, ... [e D. via os cacilheiros - do Cais do Sodré, a 15 minutos a pé -  que já não apanharia....]


Foto de Nuno Ferreira Santos («Fugas»)

- ... e J. B. dos S. era um, dos «esporádicos», diga-se , visitantes - o seu «tonitruante» tom de voz, entre outros traços, sempre despertou a curiosidade de D. - que, de vez em quando, encontra referências ao então «brooker de metais», que «hoje, aos 75 anos, faz questão de preparar o jantar todos os dias, mesmo que seja o único à mesa. Viajou por todo o lado para comer, criou a Quinta do Monte d’Oiro, ...] [artigo do SUPL. «Fugas», de ontem, 28]

segunda-feira, 23 de maio de 2022

«Ilha de manteiga», Ana Hatherly

 191

 «Era uma vez uma ilha de manteiga. Aproximando-se da praia o mar era extremamente frio. Os viajantes desciam à ilha de manteiga e começavam a subir pelas suas escarpas. Escorregavam um pouco. Penetravam na ilha por galerias elegantemente escavadas por espátulas com estrias. Os viajantes podiam passar um delicado dedo pelas paredes e apreciar o seu sabor temperado. Penetrando mais na ilha os visitantes chegavam por fim a uma câmara obscuramente tingida donde não partia nenhum corredor. Observava-se então que a retirada era impossível.»    p. 88

                                                ana hatherly, 463 tisanas, Quimera, 2006

[da «selecção» de 20-21, ora «retomada»...]

segunda-feira, 11 de abril de 2022

«a omeleta», Egito Gonçalves

 - R. diz, «a toda a gente», que está a «desacumular», carregando «sobras», e não só, para as (duas) «Mesas das Trocas» (a da «302» e a da «Máq. de Café»...); 
- ao mesmo tempo «rearruma-se» o entretanto «(re)acumulado»;- nesta tarde, enquanto decorria o «LENTO» «CdeT» do 3.º Bloco [das 17 às ...], «saltou» este poema de Egito Gonçalves, da (recente) antologia abaixo identificada [...]

a omeleta

Abrimos a janela por onde se insinua
uma forma de vento: instala-se
na cozinha um convite de amor. A luz
crepita para que os pêssegos madurem
e a panela canta como se olhasses 
o rio; pico a cebola
como se gradasse a terra, beijo-te
a nuca, as batatas aparecem descascadas;
um pássaro chilreia no ar do jardim
como se fosse ele o nosso coração. Um anjo
vela o saco das compras, um saco de plástico
onde embainhámos a geada das sombras, ali
poderão roer longamente as unhas.
Respiro-te. [...]
[incompleto]

Egito Gonçalves, O esperado fim do mundo já partiu - Uma antologia, Língua Morta, 2020, p. 50

sexta-feira, 11 de março de 2022

Ameixa seca (Balada da); O'Neill

 BALADA DA AMEIXA SECA

Vai à mercearia e compra ameixa seca.
P’ra o intestino a ameixa é levada da breca!

O mal do Ocidente – quem há que não o sinta? –
é não ter a tripa sempre limpa.

Com seus altos valores, o Ocidente
dá por demais ao dente, dá por demais ao dente.

Põe-me os olhos nos povos que só comem arroz:
dão melhores guerrilheiros do que nós.

Um saquitel de arroz, uma biciclet’,
arma na bandoleira – e lá vai o viet.

«Noss’povo», ao contrário, come o que apanha à mão.
Até parece fome de muita geração!

E larga, já comido, o corpo em qualquer canto.
Sonha Terceiro Mundo e é Europa, entretanto.

Encostado ao sobreiro ou ao ficheiro,
«Noss’povo» já nada tem de marinheiro.

Sua tripa, represa, é trabalhosa.
Sua prosápia já só é má prosa.

Portugal-do-casqueiro à Europa-das-latas
manda cortiça, vinho, diplomatas.

Espera contrapartidas: sol-e-vistas
é cartaz que atrai muitos turistas.

Mas com a ameixa seca – coisa pouca! –
é que pode acordar sem amargos de boca.

Vai à mercearia e compra ameixa seca.
P´ra o intestino a ameixa é levada da breca!


de As horas já de números vestidas, 1981; copiado daqui: 


https://alexandreoneill.bnportugal.gov.pt/as-horas-ja-de-numeros-vestidas/

sábado, 23 de outubro de 2021

Cabidela (o sangue para a), Nuno Júdice

 PRELÚDIO E VARIAÇÕES

Quando as cozinheiras cortavam o pescoço
da galinha e deixavam o sangue correr para
uma tigela de barro, uma agarrava a cabeça e a outra
prendia as asas. Assim, a operação era feita
com toda a limpeza, e eu via os olhos da galinha
perderem a cor até ao instante em que a faca
chegava ao fim, separando a cabeça
do corpo. Ainda nessa manhã, eu tinha visto
a mesma galinha no pátio, atrás do milho que lhe 
atiravam, com a felicidade de nem sonhar 
com o que lhe ia acontecer. De qualquer modo,
explicou-me um biólogo, as galinhas não sonham,
o que explica o facto de não voarem, apesar de
terem asas como as águias ou os anjos. É
por isso que o filósofos, que sonham o ideal
e a abstracção, se parecem com as galinhas: de
que lhes servem as asas do pensamento
se, tal como as aves de capoeira, não saem
do chão? E pergunto-me se não teria sido por isso que,
na revolução francesa, houve quem confundisse
os filósofos com as galinhas cortando-lhes as cabeças,
embora com o desperdício de não guardarem 
o sangue para a cabidela. 

Nuno Júdice, Navegação do acaso, D. Quixote, 2013, p. 60 

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

«Carnes Gordas»; Ana Cássia Rebelo

 Carnes gordas

    Desmembrei, desmanchei e desossei. Guardei as carnes magras na arca frigorífica, separadas em doses individuais. Salguei as carnes gordas. Ao longo de um ano preparei refeições variadas. Feijoadas, croquetes, suflês, cozidos simples, mas também pratos étnicos de difícil confecção. Com as miudezas fiz canjas perfumadas. Cozinhei os miolos à moda alentejana – primeiro fritos em banha, depois misturados com pão e sumo de laranja. Uma autêntica iguaria. Num domingo de muito sol, resolvi cozinhar para as mulheres do apartamento, sete ao todo, duas marroquinas, uma brasileira, três dominicanas e eu. Servi um guisado apurado com nabos, cenouras e batatas novas. A brasileira encheu o prato três vezes. Alegres do vinho, animadas, cantámos canções da Beyoncé, da Rihanna e da Dua Lipa. Foi um domingo bem animado. Tive especial atenção à preparação do coração. Depois de muito ponderar, decidi laminá-lo em fatias muito finas com uma faca santokuTemperei-as com limão, mostarda, molho inglês e, em carpaccio, servi-as com cuscuz. [...]    [Micro-conto, incompleto]

Ana Cássia Rebelo, Babilónia, 2021, pp. 63-64

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Arroz de Enguia (Galopim...)

 - Arroz de Enguia... que era de Coelho...

- REcorte da ENTREV.a de hoje, pelos 90 anos...

Foto de família em 1941: António Galopim de Carvalho é o primeiro à esquerda 

Conte-nos lá a história do arroz de enguia que partilhou no Facebook.

[....] A minha avó Mariana era viúva e vivia com dificuldades. Tinha três filhos. Tinha um quintal e ao lado da casa dela vivia uma família com dinheiro. Um coelho fugiu da casa dos ricos para o quintal da minha avó, escondeu-se num canto. Ela fez umas conjecturas em termos da moral, das igualdades e desigualdades sociais. Pegou no coelho e esticou-o, esfolou-o, esquartejou-o e fez um arroz. Quando os rapazes vieram para jantar: “Ó mãe, o que é o jantar?” E ela disse “arroz de enguia”, para os rapazes não dizerem que comeram arroz de coelho. Nós, cá em casa, quando fazemos arroz de coelho, mesmo já os meus netos, dizemos “arroz de enguia”. [...]  - em Video, pelo minuto 3, 20

sábado, 7 de agosto de 2021

Vinho do Porto, os Ingleses e Camilo Castelo Branco...

 ... por esta ou por outra «ordem», (na 1.a parte da) em Crónica do «Fugas», de Pedro Garcias;

RECORTES:

[...] Ainda hoje se discute sobre as verdadeiras motivações que, em 1884, terão levado Camilo Castelo Branco a desferir um ataque tão violento sobre um inglês tão consensual e estimado no Douro e no país, coroado barão e entronizado para a História como uma das figura lendárias do vinho do Porto e da sua região de origem. [...] [James Forrester.]

Na origem do livro está a publicação, 35 anos antes, de um texto na Westminster Review a condenar o vinho do Porto como, nas palavras de Camilo, “deletério e empeçonhado por acetato de chumbo e outros tóxicos anglicidas”. [...]

Pelos vistos, o autor do texto, anónimo, tinha sofrido na carne a adulteração do vinho do Porto, uma “mixórdia negra”, achando-se, na descrição mordaz de Camilo, “dispéptico, com azias, relaxes intestinais, eructações cloacinas, e o crânio sempre flamejante como suja poncheira, com o encéfalo em combustão de Cognac e casquinha de limão”. O ataque de Camilo é demolidor. “Em Inglaterra os porcos engordam na ceva do arsénico. Que fibras de raça aquela! (…)”.

domingo, 25 de abril de 2021

Este não vota porque é boi

[...]  Mas o mundo, por tão grande ser, vive de lances mais dramáticos, para ele têm pouca importância estas queixas que à boca pequena vamos fazendo de faltar a carne em Lisboa, não é notícia que se dê lá para fora, para o estrangeiro, os outros é que não têm esta modéstia lusitana, veja-se o caso das eleições na Alemanha, em Brunswick andou o corpo motorizado nacional-socialista a passear pelas ruas um boi que transportava um cartaz assim rezando, Este não vota porque é boi, havia de ser cá, levávamo-lo a votar e depois comíamos-lhe os bifes, o lombo e a dobrada, até do rabo faríamos sopa. [...]

José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis; transcrito da edição de 2016, p. 304

sábado, 13 de março de 2021

«Esplanadar»; M. António Pina

 - (cada vez mais) adepto fervoroso do «Esplanadar», mas do «Solitário», E.
aguarda o «curioso» CAL. que aí vem: sistema 4x4 a partir de 5 de Abril, com o Interior ainda Vedado aos «desmascarados»...[...]

Reabertura das ESPLANADAS em Paris;
de dossiê da Visão, a meio de Maio

Esplanada

Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora de liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.


Manuel António Pina, transcrito da p. 155 de Todas as palavras - poesia reunida, reimpressão de 2015; de Um sítio onde pousar a cabeça, 1991

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

«O meu porco Rosalina...», Ana Hatherly

 - voltar a «tisanas», uma Década depois...; e não é que resulta sempre, é como se fosse (outra vez) a primeira vez?  

[por onde andará Mia, a Qd.a que a visitou em 0910?]

«Quando cheguei a casa o meu porco Rosalina estava a escrever à máquina. Fiquei num grande estado de perplexidade e por isso perguntei o que estás aí a fazer. Sem erguer a cabeça Rosalina apontou com o chispe para o papel convidando-me a ler. A folha estava em branco porque Rosalina tinha retirado a fita da máquina para a enrolar na sua encaracolada cauda que nesse momento agitava com prazer. Rosalina foi sempre o que me impeliu ao mergulho na metafísica. Por isso sem dizer nada dirigi-me para a cozinha. Abri a gaveta dos talheres. Tirei a grande faca do estojo do trinchante. Acendi o lume e pus a grelha a aquecer. Dirigi-me de novo para o escritório onde Rosalina escrevia à máquina. Cortei-lhe algumas febras do lombo. O suficiente para uma bela refeição. Cortei também um pedaço de fita para enfeitar a travessa.»                                                                     p. 30

ana hatherly, 463 tisanas, Quimera, 2006

«Vibrant Hands», 2019, Patrícia Lino - «sobre» 12 Tisanas...

segunda-feira, 27 de julho de 2020

«O almoço dos barqueiros», Renoir, por Isabel Rio Novo

- pelas 15, em frente à FISIOT da General..., alcançada a p 93:
[reproduzida na VAR da MADR. - 81 a 83...]
«Uma pintura de Auguste Renoir, conhecida como O almoço dos Barqueiros, transporta a Autora para este período alegre na vida de Gustave. A tela mostra 
um grupo de amigos reunidos numa esplanada da Maison Fournaise, uma estalagem na ilha de Chatou, junto ao pequeno cais onde aqueles que passeavam pelo Sena atracavam os barcos durante a pausa para o almoço. Um grupo de figuras risonhas, iluminadas pela luz que jorra da grande abertura da varanda, convive jovialmente. Alguns dos comensais estão de pé, outros sentados, outros reclinados no varadim. Sobre as mesas veem-se frutas maduras e vinhos encetados. As camisolas brancas, sem mangas, de ambos os homens em primeiro plano, bem como a toalha estendida sobre a mesa, refletem a luz, distribuindo-a pela composição. Um deles, o jovem à direita, visto de perfil, sentado ao contrário na cadeira, é, como a Autora bem sabe, Gustave Caillebotte. as feições corretas, mais parecidas com as de René, estão decerto alindadas pelo olhar amigo e generoso de Renoir, porém, o corpo esguio mas musculado corresponde ao do jovem velejador.
      Por vezes, perguntam à Autora deste livro porque faz do tempo passado um dos motivos principais da sua escrita. [...]»
Isabel Rio Novo, Rua de Paris em dia de chuva, 2020, pp. 93-94

segunda-feira, 8 de junho de 2020

«A repartição dos pães»: «pão é amor...»

RECORTES, final:
[...] Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. [...] Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.
        Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir. Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. Quem bebia vinho, com os olhos tornava conta do leite. Quem lento bebeu o leite, sentiu o vinho que o outro bebia. Lá fora Deus nas acácias. Que existiam. Comíamos. Como quem dá água ao cavalo. A carne trinchada foi distribuída. A cordialidade era rude e rural. Ninguém falou mal de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos. Pão é amor entre estranhos.

Clarice Lispector, «A repartição dos pães»

terça-feira, 19 de maio de 2020

«A repartição dos pães»: «NÓS, OS ÁVIDOS»

- mais um excerto do Conto de Clarice:

[...]        Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera – mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. Tudo como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe.               [...]

Clarice Lispector, «A repartição dos pães»

segunda-feira, 18 de maio de 2020

SALADA RUSSA..., Nuno Júdice

SALADA RUSSA COM MAIONESE

Cortadas em pedaços, batatas e cenouras
acrescentam-se a ervilhas e feijão-verde. Depois
de pôr o atum em posta, pode temperar-se
com azeite ou juntar maionese. A natureza
que separou cada bocado desta salada, não
faz parte da ementa, e o resultado
leva-nos a pensar que não é um acaso
a forma como os sabores se juntam,
embora o creme da maioneses possa
fazer com que se abstraia das cores
do conjunto. Uma galáxia de sensações
enrola-nos neste espaço; e o frasco
da maionese roda como a cabeça
de um cometa, enquanto, num intervalo
filosófico, comemos a salada.


Nuno Júdice, Guia de conceitos básicos, 2010, p.83

domingo, 17 de maio de 2020

«A repartição dos pães»: A MESA - Lispector

- já há tempo que F. não relia este Conto Clariciano.
[...]
A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos – tudo emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante de serem esmagadas. E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse.
[..]
Clarice LIspector

terça-feira, 21 de abril de 2020

Queijo, Ratos e Livros (M. E. C.)

- F., que também adora Queijo... 
(todo e qualquer Um; mas aqueles «assaltos» à Tábua da C. da C., entre Abril de 78 e Dezembro de 80...), 
... mas também tem R. como «segundo N. próprio», «está solidário» com o Cronista, nas suas atribulações com Morganhos, ironicamente registadas na Narrativa de Hoje.

RECORTEs:
[...] É uma casa de muito queijo a nossa, de muito queijo e muito pão. Protegemos estes tesouros como podemos, pendurando sacos nas prateleiras, segurados pelo peso dos livros.
[...] Mas somos humanos e, de vez em quando, em noites de guitarra e de farra, esquecemo-nos dumas migalhinhas.
No dia seguinte, temos o prazer de recolher os pequenos berlindes de merda que os ratos deixam em cima da mesa de jantar. Sim, tal era a loucura da comezaina que se dispensaram de ir para trás das estantes. [...]

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

«Deus é como o caroço do pêssego...»; «A visão das plantas»

     [...] O espantalho de braços abertos, como um arcanjo apaixonado pelo 
vento que, tomando as folhas o despenteava. "Nunca é tarde, capitão Celestino." Tarde começa quando? "Mas as ameixas, sr. padre, caem  a tempo e horas. As sardinheiras dão-se todo o ano. Ainda guardo a queimadura da fogueira da roupa da minha mãe, que me cheirava  a banha e a manteiga. Sabe, sr, padre, Deus é como o caroço do pêssego, cianeto, bolor e peçonha. Alguma vez provou uma dessas amêndoas amargas? O mar findou vai para cem anos."

Djaimilia Pereira de Almeida, A visão das plantas, 2020, p. 41

domingo, 15 de dezembro de 2019

Pastéis de bacalhau, por Ferreira Fernandes

- crónica de hoje («Ode a uma Obra - Prima»), no «DN», lida num Intervalo dos «Envelopes»
RECORTE:
[...] Os pastéis de bacalhau são um concerto, um todo perfeito, a forma de zepelim, que imaginamos moldada por duas pequenas colheres de prata, um entrar breve na fritura e logo saído, os arrepios da pele tostados, mas ela dourada, a massa num casamento feliz e cebolado, a salsa para marcar levemente e para a vista. Cada uns, uma obra de arte. Bons, como condição obrigatória. E pequeninos porque se sabem parte de uma fiada de outros tão bons. [...]

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

«A mulher do meio», Raquel Mendes da Silva


87
Não quis chocolate e pedi um chá de zimbro e gengibre com bagas silvestres. Não sei que bagas serão mas se começar a escrever dislates paciência. Na mesa que prefiro está sentada uma mulher que morde umas torradinhas finas. Uma mulher velha com um meio xaile sobre os ombros. Mastiga muito lentamente como que a procurar a melhor posição dos dentes. Do outro lado estão mulheres muito novas que comem tostas e o queijo derretido deixa longos fios suspensos no ar. Eu sou a mulher do meio e o meu chá é rosado dentro da chávena branca. Por me saber de fim-de-semana longo encho-me de uma beatitude rara. Estico as pernas debaixo da mesa e rodo devagar os tornozelos. Primeiro um depois outro. Neste momento sou uma criatura contente.

Irene Mendes da Silva, A mulher do meio (fragmento 87), 2019, Língua Morta, pp. 49-50

segunda-feira, 3 de junho de 2019

sábado, 1 de junho de 2019

Tascas ( o regresso das)




- e da extinção de mais uma Velha Tasca (esta, Alentejana) nasce uma Nova, na Mouraria...; 
do OBS


- e o tasqueiro, de apelido Calhau, vem de Arquitectura...

- Well...