segunda-feira, 27 de julho de 2020

«O almoço dos barqueiros», Renoir, por Isabel Rio Novo

- pelas 15, em frente à FISIOT da General..., alcançada a p 93:
[reproduzida na VAR da MADR. - 81 a 83...]
«Uma pintura de Auguste Renoir, conhecida como O almoço dos Barqueiros, transporta a Autora para este período alegre na vida de Gustave. A tela mostra 
um grupo de amigos reunidos numa esplanada da Maison Fournaise, uma estalagem na ilha de Chatou, junto ao pequeno cais onde aqueles que passeavam pelo Sena atracavam os barcos durante a pausa para o almoço. Um grupo de figuras risonhas, iluminadas pela luz que jorra da grande abertura da varanda, convive jovialmente. Alguns dos comensais estão de pé, outros sentados, outros reclinados no varadim. Sobre as mesas veem-se frutas maduras e vinhos encetados. As camisolas brancas, sem mangas, de ambos os homens em primeiro plano, bem como a toalha estendida sobre a mesa, refletem a luz, distribuindo-a pela composição. Um deles, o jovem à direita, visto de perfil, sentado ao contrário na cadeira, é, como a Autora bem sabe, Gustave Caillebotte. as feições corretas, mais parecidas com as de René, estão decerto alindadas pelo olhar amigo e generoso de Renoir, porém, o corpo esguio mas musculado corresponde ao do jovem velejador.
      Por vezes, perguntam à Autora deste livro porque faz do tempo passado um dos motivos principais da sua escrita. [...]»
Isabel Rio Novo, Rua de Paris em dia de chuva, 2020, pp. 93-94

segunda-feira, 8 de junho de 2020

«A repartição dos pães»: «pão é amor...»

RECORTES, final:
[...] Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. [...] Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.
        Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir. Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. Quem bebia vinho, com os olhos tornava conta do leite. Quem lento bebeu o leite, sentiu o vinho que o outro bebia. Lá fora Deus nas acácias. Que existiam. Comíamos. Como quem dá água ao cavalo. A carne trinchada foi distribuída. A cordialidade era rude e rural. Ninguém falou mal de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos. Pão é amor entre estranhos.

Clarice Lispector, «A repartição dos pães»

terça-feira, 19 de maio de 2020

«A repartição dos pães»: «NÓS, OS ÁVIDOS»

- mais um excerto do Conto de Clarice:

[...]        Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera – mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. Tudo como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe.               [...]

Clarice Lispector, «A repartição dos pães»

segunda-feira, 18 de maio de 2020

SALADA RUSSA..., Nuno Júdice

SALADA RUSSA COM MAIONESE

Cortadas em pedaços, batatas e cenouras
acrescentam-se a ervilhas e feijão-verde. Depois
de pôr o atum em posta, pode temperar-se
com azeite ou juntar maionese. A natureza
que separou cada bocado desta salada, não
faz parte da ementa, e o resultado
leva-nos a pensar que não é um acaso
a forma como os sabores se juntam,
embora o creme da maioneses possa
fazer com que se abstraia das cores
do conjunto. Uma galáxia de sensações
enrola-nos neste espaço; e o frasco
da maionese roda como a cabeça
de um cometa, enquanto, num intervalo
filosófico, comemos a salada.


Nuno Júdice, Guia de conceitos básicos, 2010, p.83

domingo, 17 de maio de 2020

«A repartição dos pães»: A MESA - Lispector

- já há tempo que F. não relia este Conto Clariciano.
[...]
A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos – tudo emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante de serem esmagadas. E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse.
[..]
Clarice LIspector

terça-feira, 21 de abril de 2020

Queijo, Ratos e Livros (M. E. C.)

- F., que também adora Queijo... 
(todo e qualquer Um; mas aqueles «assaltos» à Tábua da C. da C., entre Abril de 78 e Dezembro de 80...), 
... mas também tem R. como «segundo N. próprio», «está solidário» com o Cronista, nas suas atribulações com Morganhos, ironicamente registadas na Narrativa de Hoje.

RECORTEs:
[...] É uma casa de muito queijo a nossa, de muito queijo e muito pão. Protegemos estes tesouros como podemos, pendurando sacos nas prateleiras, segurados pelo peso dos livros.
[...] Mas somos humanos e, de vez em quando, em noites de guitarra e de farra, esquecemo-nos dumas migalhinhas.
No dia seguinte, temos o prazer de recolher os pequenos berlindes de merda que os ratos deixam em cima da mesa de jantar. Sim, tal era a loucura da comezaina que se dispensaram de ir para trás das estantes. [...]

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

«Deus é como o caroço do pêssego...»; «A visão das plantas»

     [...] O espantalho de braços abertos, como um arcanjo apaixonado pelo 
vento que, tomando as folhas o despenteava. "Nunca é tarde, capitão Celestino." Tarde começa quando? "Mas as ameixas, sr. padre, caem  a tempo e horas. As sardinheiras dão-se todo o ano. Ainda guardo a queimadura da fogueira da roupa da minha mãe, que me cheirava  a banha e a manteiga. Sabe, sr, padre, Deus é como o caroço do pêssego, cianeto, bolor e peçonha. Alguma vez provou uma dessas amêndoas amargas? O mar findou vai para cem anos."

Djaimilia Pereira de Almeida, A visão das plantas, 2020, p. 41