sábado, 23 de outubro de 2021

Cabidela (o sangue para a), Nuno Júdice

 PRELÚDIO E VARIAÇÕES

Quando as cozinheiras cortavam o pescoço
da galinha e deixavam o sangue correr para
uma tigela de barro, uma agarrava a cabeça e a outra
prendia as asas. Assim, a operação era feita
com toda a limpeza, e eu via os olhos da galinha
perderem a cor até ao instante em que a faca
chegava ao fim, separando a cabeça
do corpo. Ainda nessa manhã, eu tinha visto
a mesma galinha no pátio, atrás do milho que lhe 
atiravam, com a felicidade de nem sonhar 
com o que lhe ia acontecer. De qualquer modo,
explicou-me um biólogo, as galinhas não sonham,
o que explica o facto de não voarem, apesar de
terem asas como as águias ou os anjos. É
por isso que o filósofos, que sonham o ideal
e a abstracção, se parecem com as galinhas: de
que lhes servem as asas do pensamento
se, tal como as aves de capoeira, não saem
do chão? E pergunto-me se não teria sido por isso que,
na revolução francesa, houve quem confundisse
os filósofos com as galinhas cortando-lhes as cabeças,
embora com o desperdício de não guardarem 
o sangue para a cabidela. 

Nuno Júdice, Navegação do acaso, D. Quixote, 2013, p. 60 

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

«Carnes Gordas»; Ana Cássia Rebelo

 Carnes gordas

    Desmembrei, desmanchei e desossei. Guardei as carnes magras na arca frigorífica, separadas em doses individuais. Salguei as carnes gordas. Ao longo de um ano preparei refeições variadas. Feijoadas, croquetes, suflês, cozidos simples, mas também pratos étnicos de difícil confecção. Com as miudezas fiz canjas perfumadas. Cozinhei os miolos à moda alentejana – primeiro fritos em banha, depois misturados com pão e sumo de laranja. Uma autêntica iguaria. Num domingo de muito sol, resolvi cozinhar para as mulheres do apartamento, sete ao todo, duas marroquinas, uma brasileira, três dominicanas e eu. Servi um guisado apurado com nabos, cenouras e batatas novas. A brasileira encheu o prato três vezes. Alegres do vinho, animadas, cantámos canções da Beyoncé, da Rihanna e da Dua Lipa. Foi um domingo bem animado. Tive especial atenção à preparação do coração. Depois de muito ponderar, decidi laminá-lo em fatias muito finas com uma faca santokuTemperei-as com limão, mostarda, molho inglês e, em carpaccio, servi-as com cuscuz. [...]    [Micro-conto, incompleto]

Ana Cássia Rebelo, Babilónia, 2021, pp. 63-64

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Arroz de Enguia (Galopim...)

 - Arroz de Enguia... que era de Coelho...

- REcorte da ENTREV.a de hoje, pelos 90 anos...

Foto de família em 1941: António Galopim de Carvalho é o primeiro à esquerda 

Conte-nos lá a história do arroz de enguia que partilhou no Facebook.

[....] A minha avó Mariana era viúva e vivia com dificuldades. Tinha três filhos. Tinha um quintal e ao lado da casa dela vivia uma família com dinheiro. Um coelho fugiu da casa dos ricos para o quintal da minha avó, escondeu-se num canto. Ela fez umas conjecturas em termos da moral, das igualdades e desigualdades sociais. Pegou no coelho e esticou-o, esfolou-o, esquartejou-o e fez um arroz. Quando os rapazes vieram para jantar: “Ó mãe, o que é o jantar?” E ela disse “arroz de enguia”, para os rapazes não dizerem que comeram arroz de coelho. Nós, cá em casa, quando fazemos arroz de coelho, mesmo já os meus netos, dizemos “arroz de enguia”. [...]  - em Video, pelo minuto 3, 20

sábado, 7 de agosto de 2021

Vinho do Porto, os Ingleses e Camilo Castelo Branco...

 ... por esta ou por outra «ordem», (na 1.a parte da) em Crónica do «Fugas», de Pedro Garcias;

RECORTES:

[...] Ainda hoje se discute sobre as verdadeiras motivações que, em 1884, terão levado Camilo Castelo Branco a desferir um ataque tão violento sobre um inglês tão consensual e estimado no Douro e no país, coroado barão e entronizado para a História como uma das figura lendárias do vinho do Porto e da sua região de origem. [...] [James Forrester.]

Na origem do livro está a publicação, 35 anos antes, de um texto na Westminster Review a condenar o vinho do Porto como, nas palavras de Camilo, “deletério e empeçonhado por acetato de chumbo e outros tóxicos anglicidas”. [...]

Pelos vistos, o autor do texto, anónimo, tinha sofrido na carne a adulteração do vinho do Porto, uma “mixórdia negra”, achando-se, na descrição mordaz de Camilo, “dispéptico, com azias, relaxes intestinais, eructações cloacinas, e o crânio sempre flamejante como suja poncheira, com o encéfalo em combustão de Cognac e casquinha de limão”. O ataque de Camilo é demolidor. “Em Inglaterra os porcos engordam na ceva do arsénico. Que fibras de raça aquela! (…)”.

domingo, 25 de abril de 2021

Este não vota porque é boi

[...]  Mas o mundo, por tão grande ser, vive de lances mais dramáticos, para ele têm pouca importância estas queixas que à boca pequena vamos fazendo de faltar a carne em Lisboa, não é notícia que se dê lá para fora, para o estrangeiro, os outros é que não têm esta modéstia lusitana, veja-se o caso das eleições na Alemanha, em Brunswick andou o corpo motorizado nacional-socialista a passear pelas ruas um boi que transportava um cartaz assim rezando, Este não vota porque é boi, havia de ser cá, levávamo-lo a votar e depois comíamos-lhe os bifes, o lombo e a dobrada, até do rabo faríamos sopa. [...]

José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis; transcrito da edição de 2016, p. 304

sábado, 13 de março de 2021

«Esplanadar»; M. António Pina

 - (cada vez mais) adepto fervoroso do «Esplanadar», mas do «Solitário», E.
aguarda o «curioso» CAL. que aí vem: sistema 4x4 a partir de 5 de Abril, com o Interior ainda Vedado aos «desmascarados»...[...]

Reabertura das ESPLANADAS em Paris;
de dossiê da Visão, a meio de Maio

Esplanada

Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora de liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.


Manuel António Pina, transcrito da p. 155 de Todas as palavras - poesia reunida, reimpressão de 2015; de Um sítio onde pousar a cabeça, 1991

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

«O meu porco Rosalina...», Ana Hatherly

 - voltar a «tisanas», uma Década depois...; e não é que resulta sempre, é como se fosse (outra vez) a primeira vez?  

[por onde andará Mia, a Qd.a que a visitou em 0910?]

«Quando cheguei a casa o meu porco Rosalina estava a escrever à máquina. Fiquei num grande estado de perplexidade e por isso perguntei o que estás aí a fazer. Sem erguer a cabeça Rosalina apontou com o chispe para o papel convidando-me a ler. A folha estava em branco porque Rosalina tinha retirado a fita da máquina para a enrolar na sua encaracolada cauda que nesse momento agitava com prazer. Rosalina foi sempre o que me impeliu ao mergulho na metafísica. Por isso sem dizer nada dirigi-me para a cozinha. Abri a gaveta dos talheres. Tirei a grande faca do estojo do trinchante. Acendi o lume e pus a grelha a aquecer. Dirigi-me de novo para o escritório onde Rosalina escrevia à máquina. Cortei-lhe algumas febras do lombo. O suficiente para uma bela refeição. Cortei também um pedaço de fita para enfeitar a travessa.»                                                                     p. 30

ana hatherly, 463 tisanas, Quimera, 2006

«Vibrant Hands», 2019, Patrícia Lino - «sobre» 12 Tisanas...