domingo, 21 de outubro de 2012

Boca Autopsicográfica


Cartaz mostra Gastón Acurio (de costas) a comandar a orquestra de produtores e cozinheiros que se juntam no festival Mistura

Alexandra Prado Coelho, «Há uma revolução no Peru e começou pela comida», Público, P2, 07-10-2012, pp. 12-19
 
TEXTO (e iimagem): AQUI

 

domingo, 23 de setembro de 2012

O legume

[foi uma das Aberturas da «Época de Caça;
 
- quanto à estatística dos que leram («passar os olhos não conta») a Obra-Tijolo, mesmo que só uns parágrafos, é melhor não a referir; não só T. tem mais em que se ocupar como «o resto não se diz»...
- ridente Jardim, Palácio das Estatísticas...]

Todos cortesmente admiraram a finura do Cohen. Ele agradecia, com o olho enternecido, passando pelas suiças a mão onde reluzia um diamante. E nesse momento os criados serviam um prato de ervilhas num molho branco, murmurando:

- Petits pois à la Cohen.

À la Cohen? Cada um verificou o seu menu mais atentamente. E lá estava, era o legume: Petit pois à la Cohen. Dâmaso, entusiasmado, declarou isto «chique a valer!» E fez-se, com o champagne que se abria, a primeira saúde ao Cohen!

Esquecera-se a bancarrota, a invasão, a pátria - o jantar terminava alegremente. Outras saúdes cruzaram-se, ardentes e loquazes: o próprio Cohen, com o sorriso de quem cede a um capricho de criança, bebeu à Revolução e à Anarquia, brinde complicado, que o Ega erguera, já com o olho muito brilhante. Sobre a toalha, a sobremesa alastrava-se, destroçada; no prato do Alencar as pontas de cigarros misturavam-se a bocados de ananás mastigado. Dâmaso, todo debruçado sobre Carlos, fazia-lhe o elogio da parelha inglesa, e daquele faetonte que era a coisa mais linda que passeava Lisboa. E logo depois do seu brinde de demagogo, sem razão, Ega arremetera contra Craft, injuriando a Inglaterra, querendo excluí-la de entre as nações pensantes, ameaçando-a de uma revolução social que a ensoparia em sangue: o outro respondia com acenos de cabeça, imperturbável, partindo nozes.

Os criados serviram o café. E como havia já três longas horas que estavam à mesa, todos se ergueram, acabando os charutos, conversando, na animação viva que dera o champagne. A sala, de tecto baixo, com os cinco bicos de gás ardendo largamente, enchera-se de um calor pesado, onde se ia espalhando agora o aroma forte das chartreu-ses e dos licores por entre a névoa alvadia do fumo.
 
Eça de Queirós, Os Maias, Livros do Brasil, pp. 170-171
 

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Pão Nupcial e Espelho

[para Mestre M. M., de T. do D. - mentora desta Cave - , que obteve mais um ano de Pena - «não suspensa» -  no Palácio 1213]

Acabadora foi lido em 2, 3 dias, na fase final da Pausa e ganhou a Estante, para onde irá a seguir]

[...] No dia do casamento de Bonacatta, sucederam duas coisas terríveis, além das bodas. A primeira foi que Maria fez aquilo que prometera não fazer. Enquanto estavam todos distraídos a vestir e a pentear a noiva, ela entrou no quarto da mãe [...] mesmo na penumbra, os panos brancos dispostos na cama revelavam a forma dos cestos onde o pão, desenformado naquela manhã, tinha sido posto a repousar. [...] Maria sabia que não tinha muito tempo. Levantou com cuidado, um a um, os panos brancos, examinando o conteúdo dos cestos até encontrar o pão certo, [...]
    De um redondo perfeito, ornado com pombas e flores, o pão nupcial da sua irmã parecia ainda mais belo e delicado do que quando o tinha visto na pá do forno: uma filigrana de farinha e água, filha de uma arte ao alcance de poucos.
    Enquanto a sua mãe e Bonacatta o preparavam, tinham-na impedido de assistir. e até o simples ato de o ver em segredo era uma violação cujas consequências lhe aqueciam o sangue como uma labareda, estimulada pelo cheiro forte e bom que enchia como um ventre o quarto. [...]
     Enquanto estava dobrada a observar o pão, aconteceu, porém, que os olhos se desviassem para o espelho, onde, além do pão, se viu também a si mesma. [...] Cometendo o pecado de imaginar-se através dos olhos do homem da outra, pôs-se de pé e observou-se sem nada compreender. No espelho era ela quem se casava naquele dia, e não Bonacatta, porque, naquele mundo feito de reflexos, o olhar do esposo pousara-se no seu rosto como uma mão num bolinho de amêndoa perfumado. Mas a rapariga do espelho ainda não era uma esposa: o seio jovem premia a camisa de flores desbotadas com uma graça ténue que nem mesmo o tecido ligeiro conseguia valorizar. [...]
 

 Michela Murgia, Acabadora, Lisboa, Bertrand, 2012, 57 - 58

 

sábado, 25 de agosto de 2012

A cozinha de Françoise, parte II


  A pobre Caridade de Giotto [moça de cozinha], como lhe chamava Swann, encarregada pela Françoise de os [espargos] «pelar», tinha-os ao pé de si num cesto, e o seu aspecto era doloroso, como se sentisse todas as desgraças do mundo; as leves coroas de azul-celeste que cingiam os espargos por cima das suas túnicas cor-de-rosa estavam finamente desenhadas, estrela por estrela, tal como no fresco da Virtude de Pádua estão as flores engrinaldadas em redor da fronte ou espetadas no cesto. E entretanto a Françoise fazia girar no espeto um daqueles frangos como só ela sabia assar […]

[…] eu desci à cozinha, era um daqueles dias em que a Caridade de Gioto, muito combalida do seu parto recente, não era capaz de se levantar; a Françoise, agora já sem ajuda, estava atrasada. Quando cheguei lá abaixo estava ela, nos fundos da cozinha que davam para a capoeira, a matar um frango, o qual, com a sua resistência desesperada e muito natural, mas acompanhada pela Françoise fora de si, enquanto esta procurava cortar-lhe o pescoço debaixo da orelha aos gritos de «Maldito animal! Maldito animal!», punha a santa doçura e a unção da nossa criada um pouco menos em evidência do que o faria, no jantar do dia seguinte, pela sua pele bordada a ouro como uma casula e pelo seu molho precioso destilado de um cibório. Depois de morto o frango, a Françoise recolheu-lhe o sangue, que corria sem lhe afogar o rancor, teve ainda um sobressalto de cólera e, contemplando o cadáver do seu inimigo, disse ainda uma última vez: «Maldito animal!» tornei a subir a escada todo  a tremer;  o que me apetecia era que pusessem imediatamente a Françoise na rua. Mas quem me faria os pãezinhos tão quentes, um café tão perfumado e até… aqueles frangos?...   […]

Marcel Proust. Em busca do Tempo Perdido – (tradução de Pedro Tamen) Vol I – Do lado de Swann, Círculo de Leitores, 2003, pp. 130 – 131
 

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

ESPARGOS e a cozinha de Françoise - Parte I

[...] À hora em que eu descia para saber a ementa, já a confecção do jantar tinha começado, e a Françoise, comandando as forças da natureza, agora suas ajudantes, como nos contos de fadas em que os gigantes se  empregam como cozinheiros, activava as brasas, entregava ao vapor batatas para estufar e apurava ao fogo as obras-primas culinárias inicialmente preparadas em recipientes de ceramistas, que iam das grandes cubas, panelas, caldeirões e peixeiras às terrinas para a caça, formas de pastelaria  e potezinhos de natas, passando por uma colecção completa de caçarolas de todas as dimensões. Eu ficava parado a ver em cima da mesa, onde a moça de cozinha acabava de as descascar, as ervilhas alinhadas e contadas como berlindes verdes num jogo; mas o meu fascínio era diante dos espargos, temperados de azul-ultramarino e de cor-de-rosa, e cuja espiga, finamente pincelada de violeta e azul-celeste, se esbate pouco a pouco até ao pé - porém ainda manchado do chão do seu plantio - , através de irisões que não são da terra. Achava que estas tonalidades celestes denunciavam as deliciosas criaturas que se tinham divertido a metamorfosear-se em legumes e que através do disfarce da sua carne comestível e firme nos deixavam detectar, naquelas cores nascentes de aurora, naqueles esboços de arco-íris, naquela extinção de tardes azuis, essa preciosa essência que eu reconhecia ainda quando, durante toda a noite que se seguia a um jantar em que os tivesse comido, elas brincavam, nas suas farsas poéticas e grosseiras como um conto de fadas de Shakespeare, a transformar o meu vaso de noite num vaso de perfume.

Marcel Proust. Em busca do Tempo Perdido – (tradução de Pedro Tamen) Vol I – Do lado de Swann, Círculo de Leitores, 2003, pp. 129 – 130

 

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

A Mesa em Combray

[...] É que,  ao fundo permanente de ovos, de costeletas, de batatas, de compotas, de bolachas, que ela já nem sequer nos anunciava, a Françoise acrescentava - em conformidade  com os trabalhos dos camponeses e dos pomares, com o fruto da maré, com os acasos do comércio, com as gentilezas dos vizinhos e com o seu próprio génio, e tão bem que a nossa ementa [...] reflectia um pouco o ritmo das estações e dos episódios de vida - um rodovalho, porque a vendedora lhe garantira a frescura, um peru, porque tinha visto um bonito no mercado de Roussainville-le-Pin, carnudas alcachofras da horta, porque ainda não no-las tinha preparado daquela maneira, uma perna de carneiro assada porque o ar livre faz um buraco no estômago e ia passar muito tempo até descermos às sete horas, espinafres para variar, alperces porque eram ainda uma raridade, groselhas porque daí a quinze dias já não as haveria, framboesas que o senhor Swann trouxera de propósito, cerejas, as primeiras da cerejeira do jardim [...], queijo cremoso de que eu dantes gostava muito, um bolo de amêndoas porque o encomendara na véspera, um brioche porque era a nossa vez de o oferecer. Quando aquilo tudo acabava, era-nos proposto, preparado expressamente para nós, mas dedicado em especial ao meu pai, que era amador, um creme de chocolate, uma inspiração, uma atenção especial da Françoise, fugidia e leve como uma obra de circunstância, na qual ela pusera todo o seu talento. Quem se recusasse a prová-lo dizendo: «Acabei, já não tenho fome», seria imediatamente humilhado ao nível daqueles brutamontes que, até no presente que um artista lhes oferece de uma das suas obras, olham para o peso e para a matéria, quando o que vale é a intenção e a assinatura. Até deixar uma gota no prato seria uma prova da mesma indelicadeza que levantar-se antes do fim da peça nas barbas de um compositor. [...]

Marcel Proust. Em busca do Tempo Perdido – (tradução de Pedro Tamen) Vol I – Do lado de Swann, Círculo de Leitores, 2003, pp. 78 – 79

domingo, 12 de agosto de 2012

Fava-Rica

«Crónica Urbana- Beco dos Cavaleiros», Alexandra Prado Coelho, texto, João Catarino, Ilustração, «Revista 2», p. 41, Público, 12-08-2012

Além das referências ao único restaurante - na Mouraria - que ainda a serve e a Manolo Carrera - figura da comunidade Galega de Lisboa que G. conheceu nos idos Quentes de 75 e «adjacentes» -  um Recorte que o «transportou» para a Infância:


     [...]   É uma sopa que nos transporta para o tempo em que os trabalhadores de Lisboa acordavam de madrugada e comiam uma sopa quentinha, trazida pelas mulheres da fava-rica, numa panela protegida dentro de um cesto de verga, à cabeça. E transporta-nos para essa frase, que tanto ouvimos sem a percebermos bem: “…até vir a mulher da fava-rica”.

[…] as pessoas gostavam tanto da sopa que estavam dispostas a esperar o tempo que fosse preciso por ela. E a mulher, nesses tempos antigos, acabava mesmo por aparecer, apregoando: faaaava-riiica! Depois o pregão deixou de se ouvir, e as mulheres da fava-rica sobreviveram apenas em velhas fotos e gravuras. […]

domingo, 17 de junho de 2012

As Meninas de Isabel...

... Allende foram  convidadas por Mestre M. M.
( num «bem esgalhado» texto da própria)              AQUI

quinta-feira, 7 de junho de 2012

sábado, 2 de junho de 2012

Cerejas, Vénus e Vulcano - Estilo

[num destes dias. Mestre M. M. - mentora desta Cave - falava de cerejas na sala MORT, temprariamente ocupada por SIND - para M. M., então]

[...] Blimunda estava ali, com um cesto cheio de cerejas, e respondia, Há um tempo para construir e um tempo para destruir, umas mãos assentaram as telhas deste telhado, outras o deitarão abaixo, e todas as paredes, se for preciso. Esta é que é Blimunda, disse o padre, Sete-Luas, acrescentou o músico. Ela tinha brincos de cerejas nas orelhas, trazia-as assim para se mostrar a Baltasar, e por isso foi para ele, sorrindo e oferecendo o cesto. É Vénus e Vulcano, pensou o músico, perdoemos-lhe a óbvia comparação clássica, [...]
        Sentaram-se todos em redor da merenda, metendo a mão no cesto, à vez, sem outro resguardar de conveniências que não atropelar os dedos dos outros, agora o cepo que é a mão de Baltasar, cascosa como um tronco de oliveira, depois a mão eclesiástica e macia do padre Bartolomeu Lourenço, a mão exacta de Scarlatti, enfim Blimunda, mão discreta  e maltratada, com as unhas sujas de quem veio da horta e andou a sachar antes de apanhar as cerejas. Todos eles atiram os caroços para o chão, el-rei que aqui estivesse faria o mesmo, é por pequenas coisas assim que se vê serem os homens realmente iguais.

José Saramago, Memorial do convento
[no «CBDV», em 2007, em resposta a consulta vinda do Brasil, Eunice Marta analisa estilisticamente parte do recorte acima transcrito ]

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Porco na banha

Recorte da obra referida em anterior E., em leitura, ainda.

34
        Nico trabalhava com calor nas mãos, alegria constante. Batizaram as crianças na cidade, o menino é Onofre, a menina é Anésia. Os dois de amarelo nos braços de Maria. [...]
        Antônio carregava os Gêmeos por tudo, botava-os nun carrinho de mão e saía para o meio do milharal. [...] Maria deixava, o casal voltava com manha e fome. [...]
        Nico chegava com um tambor de leite grosso, amarelado de gordura, Maria tomava o creme puro. Às vezes trazia um porco abatido na Fazenda, picava a carne e temperava com alho, sal, cheiro-verde e pimenta. Deixava de um dia para o outro e fritava na banha suína. Os pedaços eram guardados em latas de dez litros com a gordura despejada por cima. Todos os dias Maria tirava com a conha os pedaços conservados na banha endurecida. Aquilo dourava o arroz deixando-o solto e brilhante. Tomates em rodela, cebola e pepino. Molho de gordura de porco, limão, pimenta-de-cheiro e sal. Pela tarde, abacate e mamão com rapadura moída, esfarelada dentro da cuia macia da fruta.
       Café o dia todo, mal esfriava no bule se coava outro. [...]

Andréa del Fuego, Os Malaquias, Lisboa, Porto Editora, 2012, pp. 93,94

sábado, 12 de maio de 2012

Sábado - Pães ( A repartição dos)

SUBLIME

Alguns Recortes (- também facilmente este conto pode ser encontrado)

«Pão é amor entre estranhos.»       (aforisma com que o Conto encerra)

“A repartição dos pães”
        Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. [...]
         Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha a bênção da fome. E foi quando surpreendidos deparamos com a mesa. Não podia ser para nós... Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado e que não viera? Mas éramos nós mesmos. Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos. A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos – tudo emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante de serem esmagadas. E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse.
         Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera – mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. Tudo como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe.
         Em nome de nada, era hora de comer. [...]

Clarice Lispector (1920 - 1977), in A legião estrangeira (1.ª ed: 1964)

Uma galinha

Só o Recorte inicial deste conhecidíssimo conto de Clarice Lispector - acessível, na totalidade, nos mais diversos locais

Uma Galinha, de Clarice Lispector (1920-1977)

             Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.
           Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
            Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
            Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.
            Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se pode­ria contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma. [...]

in Laços de Família, Editora Nova Fronteira, 15.ª ed. , Rio de Janeiro, 1986, pp. 33-36 [1.ª ed:1960]

Seleccionado por Ítalo Moriconi, figura na antologia Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, Rio de Janeiro, Objectiva, 2001, pp. 258-260

sexta-feira, 11 de maio de 2012

A mania dos cheiros

[é uma das leituras do momento; no início da Acção,
«Nico tinha olho azul, nove anos, Antônio, miúdo, seis. Júlia, barriguda, quatro» (p. 9)         [na página seguinte, a morte dos pais]       [Antônio vai ficar anão]

Página 53:
19
              Antônio, com 16 anos, já não mergulhava nas cômodas da freira, mas roubava meias das meninas. Tinha mania de cheiros, e todos eles eram agradáveis. Da carniça à fervura de uma compota. Gostava de colher e pote, pegar no fundo da vasilha um doce cremoso ou as fatias finas das cidras. Antônio se lambuza dos feitos de cozinha, até da água que enxágua as louças na pia, passa a mão cortando o fluxo da torneira. Era o filho do orfanato. Todo o colégio era dele, os cômodos, as cômodas, os órfãos, as freiras.

Andréa Del Fuego, Os Malaquias, 2012, Porto Editora



quarta-feira, 9 de maio de 2012

Isabelle Faria

[G. não conhece a A. referida;
foi a ARQ. A. A. que lhe disse, hoje,  que foi P. no Velho Paraíso, «há uns quantos anos», e lhe passou o convite da A.;
fica a imagem do mesmo, que, naturalmente, G. não se atreve a comentar]

ISABELLE FARIA › Seven Years|Seven Sins
- na Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea,
 - no sábado, 19 de maio de 2012, pelas 17h30.

Exposição patente até 2 de setembro de 2012.

domingo, 6 de maio de 2012

«A janela da cozinha...» - Luísa Costa Gomes

Conto de Luísa Costa Gomes
- que pode ser lido, na íntegra, no endereço colocado após o Recorte inicial [...]

A primeira coisa que embateu nos olhos de Luisinho ao entrar foi a mesa relhena. A grande mesa oval, bem assente no meio da sala, a transbordar de doçaria e delicadezas. E enquanto os outros miúdos se atiçavam uns contra os outros e saltavam aos gritos por cima dos sofás, Luisinho fora o singular a ir direito ao que mais o comovia e especado diante da mesa posta, religioso ficou a deixar entrar pelas retinas toda aquela pompa e grandeza. E viu, destacada do todo, antes do mais a taça de cristal, redonda, muito trabalhada,  da musse de chocolate coberta de nozes; a seu lado, o monumento da tarde, um bolo imenso de claras com morangos e natas batidas, camadas de diversas naturezas sobrepostas, todas elas boas, todas elas harmoniosas, conjugadas num macio cilindro branco que fazia sonhar; vinham depois, deitadas num prato de porcelana chinesa, por cima de uma suspeita de luta entre dragões, as cornucópias, recheadas com doce de ovos. Quase se embaciam os óculos do Luisinho ao contemplar as taças de gelado feito em casa, na máquina de manivela, com sabores de café, de morango, de chocolate, de natas, dispersas sobre a mesa, quase livres de irem para onde lhes apetecesse, mais para junto da travessa dos rolinhos de pão-de-forma com atum e maionese, mais para longe do bolo enfeitado com ziguezagues de natas, por baixo das quais se sabia estarem um pão-de-ló que não podia sem exagero ser mais amarelo e um creme de manteiga pecaminoso Desfalece o coração de Luisinho, imune ao caos infantil a que na sala velozmente se chega, ao passar os olhos sobre os três pratos grandes, cama real das sanduíches aparadas,com fiambre e fuagrá autêntico. Recapitulou, saltando a bandeja dos biscoitos de manteiga, que é comida de miúdo e o palhaço de gelatina, transigência inaceitável ao paladar selvagem. E demorou-se com prazer no bolo que ele já conhecia, musse cozida no forno, coberta de chocolate. Na mesinha de apoio, em formação cerrada, os jarros de limonada com muito gelo, sumo de laranja para os menos exigentes, chá gelado e mazagrã para as mães.

Luisinho saiu do devaneio com a miudagem a chegar-se à mesa. Teve um repentino movimento de irritação e afastou, em dupla cotovelada, dois rapazinhos  gémeos, que repetiram o assalto. Luisinho acabou por se render à evidência de que o arranjo perfeito daquela mesa seria, daí em diante, não mais que uma lembrança. Os bárbaros atacavam as sanduíches, davam cabo do palhaço e descompunham o bolo de claras. [...]

   Luísa Costa Gomes, «A janela da cozinha como argumento moral, in Contos outra vez, Cotovia, 1997, pp. 45 - 52 -     CONTO COMPLETO: AQUI

Eduardo Lourenço:
[...] conto antológico [...] história de um menino bulímico, [...] para quem o mundo tem a consistência de um bolo que ele devora e por quem é devorado, alegoria cruel do nosso mundo de ricos de tudo e de tudo esfomeados»
in «Idos de Setembro», prefácio a Setembro - e outros contos, D. Quixote, 2007, p. 10

sábado, 5 de maio de 2012

Antepastos, II

- Na quarta, M. M. tinha, sobre a Mesa, um livro sobre a Mesa na I. M.;

- Na quinta, na Grande Sala Mort., estava sentada à esquerda de G.;

- À direita, M. C. L. - que tem um filho, literalmente, no Meio, talvez a caminho de conceituada escola na área da REST.:

- Cruzaram-se conversas e M. M. mostrou um dos seus Desportos: criar, fotografar e «estrafegar»

- Esta nova casa «nasce» então para propor leituras várias, mas todas centradas nos motivos acima expostos

- Viva a Mesa Literária.


Antepasto, I

- longa a história;

- dos bebés, a Mitologia familiar contava que inicialmente, durante o Dia,  dormiam na Alcofa, suficientemente perto e longe quer do FOGÃO, quer da MÃE;

- «Casa de Pasto» era o Nome Genérico - a história, hoje, não;

- S. Paulo, Bica, Cais do Sodré, Bairro Alto, Combro, a Geografia;

- No reino dos »COMES E BEBES», então, após cerca de 19-20 anos, mais 15 aproximadamente;

-19 + 15 = 34 -35

-  (Primeira ou Grande) Metade de uma Vida, qualquer que seja o lado «por que se  queira ir»

Aleluia.