quarta-feira, 22 de agosto de 2012

ESPARGOS e a cozinha de Françoise - Parte I

[...] À hora em que eu descia para saber a ementa, já a confecção do jantar tinha começado, e a Françoise, comandando as forças da natureza, agora suas ajudantes, como nos contos de fadas em que os gigantes se  empregam como cozinheiros, activava as brasas, entregava ao vapor batatas para estufar e apurava ao fogo as obras-primas culinárias inicialmente preparadas em recipientes de ceramistas, que iam das grandes cubas, panelas, caldeirões e peixeiras às terrinas para a caça, formas de pastelaria  e potezinhos de natas, passando por uma colecção completa de caçarolas de todas as dimensões. Eu ficava parado a ver em cima da mesa, onde a moça de cozinha acabava de as descascar, as ervilhas alinhadas e contadas como berlindes verdes num jogo; mas o meu fascínio era diante dos espargos, temperados de azul-ultramarino e de cor-de-rosa, e cuja espiga, finamente pincelada de violeta e azul-celeste, se esbate pouco a pouco até ao pé - porém ainda manchado do chão do seu plantio - , através de irisões que não são da terra. Achava que estas tonalidades celestes denunciavam as deliciosas criaturas que se tinham divertido a metamorfosear-se em legumes e que através do disfarce da sua carne comestível e firme nos deixavam detectar, naquelas cores nascentes de aurora, naqueles esboços de arco-íris, naquela extinção de tardes azuis, essa preciosa essência que eu reconhecia ainda quando, durante toda a noite que se seguia a um jantar em que os tivesse comido, elas brincavam, nas suas farsas poéticas e grosseiras como um conto de fadas de Shakespeare, a transformar o meu vaso de noite num vaso de perfume.

Marcel Proust. Em busca do Tempo Perdido – (tradução de Pedro Tamen) Vol I – Do lado de Swann, Círculo de Leitores, 2003, pp. 129 – 130

 

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