terça-feira, 25 de outubro de 2022

Nobre, «reencontrado» por Castro Mendes

[...] Eu já sabia da fama sulfurosa de um certo frade, que esperava a nossa excursão à saída da mala posta, no lugar de Casais Novos, freguesia de São Martinho de Recesinhos, lá onde se degustam os famosos "bolinhos de amor". Mas não esperava era ver sair de outra mala posta, pela mão de um homem vermelhusco e nutrido, que logo identifiquei como "o rubro e gordo Cabanelas" do poema, a figura franzina do jovem António Nobre, a caminho da casa de sua Mãe, ali perto no Seixo.
Tal como no poema, a mesa da estalagem onde nos encontrávamos tinha sobre as "toalhas brancas, honradas" uma boa oferta de doces e vinhos verdes. António Nobre, jovem caloiro de Coimbra, irritado e indisposto com as praxes, que já lhe tinham custado levar palmatoadas em público, e incomodado com o ar "bacharelático e funesto" que se respirava naquela Universidade, vinha ensimesmado e ausente, embora se sentisse aliviado com as férias familiares e manifestasse contentamento por reencontrar, ali nos Casais, a boa senhora Ana das Dores, que nos oferecia pão e doces e nos mostrava o magnífico fogão tradicional em que preparava todas aquelas vitualhas. [...]

domingo, 29 de maio de 2022

Mercearia B. + Bento dos Santos

 - muitos anos passaram; D., num dos «próximos» dias, irá deambular por lá - quotidiano percurso entre Out-Nov de 81 e 31 de Julho de 83; antes que venha a esquecer-se de vez, regista-se o Nome do «Chef», minhoto, sócio do EXEC. A. O., Antunes - que chamava «doutor» a D. [...]

- servia-se «depois das horas» = ceias após espectáculos, por exemplo, ... [e D. via os cacilheiros - do Cais do Sodré, a 15 minutos a pé -  que já não apanharia....]


Foto de Nuno Ferreira Santos («Fugas»)

- ... e J. B. dos S. era um, dos «esporádicos», diga-se , visitantes - o seu «tonitruante» tom de voz, entre outros traços, sempre despertou a curiosidade de D. - que, de vez em quando, encontra referências ao então «brooker de metais», que «hoje, aos 75 anos, faz questão de preparar o jantar todos os dias, mesmo que seja o único à mesa. Viajou por todo o lado para comer, criou a Quinta do Monte d’Oiro, ...] [artigo do SUPL. «Fugas», de ontem, 28]

segunda-feira, 23 de maio de 2022

«Ilha de manteiga», Ana Hatherly

 191

 «Era uma vez uma ilha de manteiga. Aproximando-se da praia o mar era extremamente frio. Os viajantes desciam à ilha de manteiga e começavam a subir pelas suas escarpas. Escorregavam um pouco. Penetravam na ilha por galerias elegantemente escavadas por espátulas com estrias. Os viajantes podiam passar um delicado dedo pelas paredes e apreciar o seu sabor temperado. Penetrando mais na ilha os visitantes chegavam por fim a uma câmara obscuramente tingida donde não partia nenhum corredor. Observava-se então que a retirada era impossível.»    p. 88

                                                ana hatherly, 463 tisanas, Quimera, 2006

[da «selecção» de 20-21, ora «retomada»...]

segunda-feira, 11 de abril de 2022

«a omeleta», Egito Gonçalves

 - R. diz, «a toda a gente», que está a «desacumular», carregando «sobras», e não só, para as (duas) «Mesas das Trocas» (a da «302» e a da «Máq. de Café»...); 
- ao mesmo tempo «rearruma-se» o entretanto «(re)acumulado»;- nesta tarde, enquanto decorria o «LENTO» «CdeT» do 3.º Bloco [das 17 às ...], «saltou» este poema de Egito Gonçalves, da (recente) antologia abaixo identificada [...]

a omeleta

Abrimos a janela por onde se insinua
uma forma de vento: instala-se
na cozinha um convite de amor. A luz
crepita para que os pêssegos madurem
e a panela canta como se olhasses 
o rio; pico a cebola
como se gradasse a terra, beijo-te
a nuca, as batatas aparecem descascadas;
um pássaro chilreia no ar do jardim
como se fosse ele o nosso coração. Um anjo
vela o saco das compras, um saco de plástico
onde embainhámos a geada das sombras, ali
poderão roer longamente as unhas.
Respiro-te. [...]
[incompleto]

Egito Gonçalves, O esperado fim do mundo já partiu - Uma antologia, Língua Morta, 2020, p. 50

sexta-feira, 11 de março de 2022

Ameixa seca (Balada da); O'Neill

 BALADA DA AMEIXA SECA

Vai à mercearia e compra ameixa seca.
P’ra o intestino a ameixa é levada da breca!

O mal do Ocidente – quem há que não o sinta? –
é não ter a tripa sempre limpa.

Com seus altos valores, o Ocidente
dá por demais ao dente, dá por demais ao dente.

Põe-me os olhos nos povos que só comem arroz:
dão melhores guerrilheiros do que nós.

Um saquitel de arroz, uma biciclet’,
arma na bandoleira – e lá vai o viet.

«Noss’povo», ao contrário, come o que apanha à mão.
Até parece fome de muita geração!

E larga, já comido, o corpo em qualquer canto.
Sonha Terceiro Mundo e é Europa, entretanto.

Encostado ao sobreiro ou ao ficheiro,
«Noss’povo» já nada tem de marinheiro.

Sua tripa, represa, é trabalhosa.
Sua prosápia já só é má prosa.

Portugal-do-casqueiro à Europa-das-latas
manda cortiça, vinho, diplomatas.

Espera contrapartidas: sol-e-vistas
é cartaz que atrai muitos turistas.

Mas com a ameixa seca – coisa pouca! –
é que pode acordar sem amargos de boca.

Vai à mercearia e compra ameixa seca.
P´ra o intestino a ameixa é levada da breca!


de As horas já de números vestidas, 1981; copiado daqui: 


https://alexandreoneill.bnportugal.gov.pt/as-horas-ja-de-numeros-vestidas/