terça-feira, 19 de maio de 2020

«A repartição dos pães»: «NÓS, OS ÁVIDOS»

- mais um excerto do Conto de Clarice:

[...]        Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera – mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. Tudo como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe.               [...]

Clarice Lispector, «A repartição dos pães»

segunda-feira, 18 de maio de 2020

SALADA RUSSA..., Nuno Júdice

SALADA RUSSA COM MAIONESE

Cortadas em pedaços, batatas e cenouras
acrescentam-se a ervilhas e feijão-verde. Depois
de pôr o atum em posta, pode temperar-se
com azeite ou juntar maionese. A natureza
que separou cada bocado desta salada, não
faz parte da ementa, e o resultado
leva-nos a pensar que não é um acaso
a forma como os sabores se juntam,
embora o creme da maioneses possa
fazer com que se abstraia das cores
do conjunto. Uma galáxia de sensações
enrola-nos neste espaço; e o frasco
da maionese roda como a cabeça
de um cometa, enquanto, num intervalo
filosófico, comemos a salada.


Nuno Júdice, Guia de conceitos básicos, 2010, p.83

domingo, 17 de maio de 2020

«A repartição dos pães»: A MESA - Lispector

- já há tempo que F. não relia este Conto Clariciano.
[...]
A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos – tudo emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante de serem esmagadas. E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse.
[..]
Clarice LIspector