quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

«Não sabe a nada»

Não sabe a nada, repetia o marido, antes de se levantar da mesa e se esparramar no sofá, lendo o jornal desportivo. Mordia o lábio, engolia em seco.
Aprendera a cozinhar com a mãe. Não falhava nos tempos, nos temperos e nos apuros. Dia após dia, insistia. Servia-o, expectante.
Não sabe a nada.
Na hora, apetecia-lhe despejar o frasco do piripiri no cozinhado seguinte. Mas insistia. Dia após dia. O elogio viria, um dia. 
Enlouqueceu antes disso.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Feijão, batatas, cebolas...

Feijão, batatas, cebolas, arroz, repetia pelo caminho. Nem mãe nem filho sabiam escrever. 
Fascinante, o equilíbrio do lápis dos fiados na orelha do merceeiro. Cai e rola, ordenou-lhe mentalmente. Não caía. O sr. Zé  baixou-se para aviar batatas. Um piparote e o lápis rolou, ficando oculto no canto das vassouras. O merceeiro, pressionado pela Alzira, foi buscar outro. Apanhou-o e guardou-o na sacola. 
Escondeu-o da mãe. Cheirava divinamente. Sempre que o perdia, pelo cheiro o fazia reaparecer.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Natal (jantar de)

- «Falta muito para o Natal?» - começa M. a perguntar, em público, logo a partir de Janeiro...
- não é disso que aqui se trata, mas sim da Crónica que «vem ao encontro» dessa frase - de M. E. C. - Cronista do «Irreal Quotidiano» (J. G. F.), como Outro não haverá, Hoje...,
                  - de hoje, no Público

Recorte:
[...]
As mesas com ementas fixadas de antemão são as menos alegres. Nalgumas chega-se ao luxo de poder escolher entre o arroz de frutos do mar e o empadão de farinheira. O vinho é da casa, as garrafas estão contadas e "não, não é possível pedir que se faça uma sangria à parte com uma delas, [...]
As máscaras fazem-se pagar. Comem a cara. Quanto àquele ríctus que usamos para fazer de conta que nos estamos a divertir enquanto ouvimos o chato do contencioso a contar como é que se vai da Buraca para Barcarena sem usar o IC19 - ele pode ficar-nos esculpido nas bochechas para sempre.
[...]

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

«Canja»

277

Os pequenos deuses que dormem nas coisas prosaicas protegem as mais incertas. Isto a propósito de uma canja. Conto. Um dia o mundo desabou-me em cima e uma amiga disse-me: oh, senta-te aí que te vou fazer uma canja com gengibre e hortelã. Fez e eu comi. Depois veio o sono – que é a asa de um anjo – e levou-me pela noite adentro. Convém explicar que o mundo me desaba em cima com regularidade e num destes dias pensei: oh, uma canja, havia de fazer uma canja. Fui procurar nos recessos da arca frigorífica e encontrei com quê. Uma sorte. E umas folhas de hortelã. É certo que nem sempre baixam as asas dos anjos mas soube-me bem.


Ivone Mendes da Silva, Dano e virtude, Língua Morta, 2017 (Julho), p. 132, 133

segunda-feira, 24 de julho de 2017

«Chez Hippolyte» - Luís Afonso

do nono volume da «Granta»,... REcortes da narrativa de Luís Afonso:


Ilustração de André Carrilho
Fotog. da P. 106
[...] Acendi os bicos do fogão ao som de gritos de desespero. Através do passa-pratos vi-os a arrastar o infeliz para uma mesa. «Por favor, não quero jantar, não tenho fome», suplicava. Mas não havia nada que pudesse deter aquela dinâmica violenta. O chefe de sala sentou o cliente-que-no-fundo-era-prisioneiro à bruta numa cadeira e ordenou-lhe que se comportasse com elevação. Tal não se verificou: o cliente [...] agarrou num garfo e tentou espetar-lho na barriga, mas a meio do gesto levou com a coronha da espingarda do escanção na cabeça e tombou, inconsciente. Acordou com as estaladas que o Hippolyte lhe dava na cara. O nosso guru não admitia que a comida esperasse. E eu tinha os primeiros pratos do menu de degustação prontos a servir. O cliente (...) estava agora amarrado à cadeira, (...) e babava-se um bocadito (...) «Vamos ao trabalho», entoou o chef, com o dedo indicador espetado no ar. O chefe de sala veio buscar o primeiro item do menu, [...] e levou-o com a devida cerimónia até à mesa, explicando que eram lascas de imperador marinado com molho de citrinos. O escanção aproximou-se e serviu um copo de Sauvignon blanc du Loire, 2014, [...]. Dado o cliente não ter esboçado qualquer tentativa de pegar nos talheres, quiçá por ter as mãos atadas, [...] o chefe de sala abria-lhe a boca à força e o Hippolyte enfiava-lhe a comida lá para dentro. [...] O segundo prato foi uma sinfonia de folhas frescas da horta, frutos secos e presunto, que teve como companhia um excelente Vin jaune du Jura, 2008. Correu melhor. [...]

Luís Afonso, «Chez Hippolyte», Granta, n.º 9, Maio de 2017, pp. 114, 5

segunda-feira, 3 de julho de 2017

«o mundo é só fogo e pão cozido» - Herberto Helder

- verso (sétimo) do poema da p. 29 de A morte sem mestre - livro de Maio de 14, que M. se recorda de [...]- 
- «repousou», desde então», num dos «montes» que ocupam o tampo da EScriv. que foi do Princeso, e só hoje lhe foi retirado o celofane, porque foi ouvido esse poema, dito pelo próprio, na «Vida Breve», de 28 de Junho...

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

«tudo desligado» (Cafés «free wi-fi»)

Outra zona do café [Kibbitznest, em Chicago]
 também repleta de livros e sofás


Cafés livres da [praga da] «REDE»:

«tudo desligado para promover o diálogo»

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