segunda-feira, 24 de julho de 2017

«Chez Hippolyte» - Luís Afonso

do nono volume da «Granta»,... REcortes da narrativa de Luís Afonso:


Ilustração de André Carrilho
Fotog. da P. 106
[...] Acendi os bicos do fogão ao som de gritos de desespero. Através do passa-pratos vi-os a arrastar o infeliz para uma mesa. «Por favor, não quero jantar, não tenho fome», suplicava. Mas não havia nada que pudesse deter aquela dinâmica violenta. O chefe de sala sentou o cliente-que-no-fundo-era-prisioneiro à bruta numa cadeira e ordenou-lhe que se comportasse com elevação. Tal não se verificou: o cliente [...] agarrou num garfo e tentou espetar-lho na barriga, mas a meio do gesto levou com a coronha da espingarda do escanção na cabeça e tombou, inconsciente. Acordou com as estaladas que o Hippolyte lhe dava na cara. O nosso guru não admitia que a comida esperasse. E eu tinha os primeiros pratos do menu de degustação prontos a servir. O cliente (...) estava agora amarrado à cadeira, (...) e babava-se um bocadito (...) «Vamos ao trabalho», entoou o chef, com o dedo indicador espetado no ar. O chefe de sala veio buscar o primeiro item do menu, [...] e levou-o com a devida cerimónia até à mesa, explicando que eram lascas de imperador marinado com molho de citrinos. O escanção aproximou-se e serviu um copo de Sauvignon blanc du Loire, 2014, [...]. Dado o cliente não ter esboçado qualquer tentativa de pegar nos talheres, quiçá por ter as mãos atadas, [...] o chefe de sala abria-lhe a boca à força e o Hippolyte enfiava-lhe a comida lá para dentro. [...] O segundo prato foi uma sinfonia de folhas frescas da horta, frutos secos e presunto, que teve como companhia um excelente Vin jaune du Jura, 2008. Correu melhor. [...]

Luís Afonso, «Chez Hippolyte», Granta, n.º 9, Maio de 2017, pp. 114, 5

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