quarta-feira, 29 de maio de 2019

...café manhoso» («Entrei em Londres num...) - Ana Luísa Amaral

LUGARES COMUNS

Entrei em Londres
num café manhoso (não é só entre nós
que há cafés manhosos, os ingleses também
e eles até tiveram mais coisas, agora
é só a Escócia e um pouco da Irlanda e aquelas
ilhotazitas, mas adiante)

Entrei em Londres 
num café manhoso, pior ainda que um nosso bar
de praia [...]


Ana Luísa Amaral, poema de Coisas de partir, 1993 - relido das pp. 109-111, de Inversos - poesia 1990 - 2010, após ter sido ouvido na voz da autora

na Entrevista a Raquel Marinho da Série  «O poema ensina a Cair»- RECORTE:
- A poesia serve para quê?

A poesia de facto não serve para nada, não tem uma aplicação prática. Com a poesia não se faz uma mesa, não se constrói uma casa. Mas ela é absolutamente fundamental, porque, como toda a arte, assiste-lhe não o pragmatismo, mas o simbólico, e nós, humanos, precisamos do simbólico, que passa sempre pela nossa relação com os outros. Precisamos dele como precisamos de comer ou de dormir. Porque é sua a dimensão estética, mesmo quando fala do horror ou da crueldade. A poesia, tal como eu a concebo, faz-nos, acredito, melhores pessoas, porque nos move (podendo fazer-nos agir) – e nos comove.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

«figos do inverno», Júdice

Estrelas

Desfaço nas mãos os figos, os figos
fugazes de setembro, enquanto o seu leite
escorre pelas folhas verdes que
os envolvem. Esses figos, que me traziam
em cestos de vime, eram mel na boca
que os saboreava. Secos, iam parar
aos frascos fechados para o inverno, de onde
os tirava para os meter no bolso,
antes de sair. «O que tens aí?», perguntavas-me. E
eu passava-te para a mão um desses figos, e via
como o abrias, chupando os seus grânulos,
e passeando na boca a amêndoa que
o recheava. Onde estarás?, pergunto. Poderia
ainda hoje partilhar, contigo, um
desses figos de inverno? Ou o seu leite secou,
nos cantos dos lábios, roubando-te 
as palavras, e o húmido murmúrio
do amor?

Nuno Júdice, Pedro, lembrando Inês, 2001, p. 20