sexta-feira, 16 de junho de 2023

«Matança OU a Faca como Espada», «Signo Sinal»

 - S. S. será devolvido à BiblioPenha até dia 29; de manhã, na ESP DEL + AGO, atingiu-se a p. 88

- [a Matanças, terá D. assistido a uma, no Vau (?) e a quantas no Monte da  Marechal ?]

[...] - Girou já para casa!
e nós disparámos a correr, voltámos logo depois. Silêncio de novo, só o grunhido do porco, o respirar forte dos homens. O matador erguia contra a luz a longa faca triangular, passava-lhe a mão no fio. Estava só, alheio a tudo. Vejo-lhe a figura alta, enorme. Só. Sacerdote antiquíssimo , sagrado de gravidade. Olhava-o com terror, eu, ele não via ninguém. [...] O sacerdote extático, subia-lhe a cabeça até à noite.  Imóvel, nem olhava. Tinha um poder oculto e imenso, concentrava-se todo na sua grandeza. Meu pai andava á volta do porco, dava instruções. [...]
 - É amarrarem-no à tábua
mas o matador, grave, disse que não. Era uma violência, havia a dignificação da vítima e de nós, amarrá-lo era impuro. Nas mãos firmes dos homens, pregado à tábua, esperneando frenético. [...] Transido, eu, os olhos dilatados de terror. Então o matador avançou. Ergueu ao alto a faca como uma espada, traçou na fronte, com ela erguida, o sinal da cruz. E dobrando-se para o animal, raspou-lhe ligeiro um sítio no pescoço. [...]
                                          
                                         Vergílio Ferreira, Signo Sinal, Bertrand, 1979, p. 78

domingo, 11 de junho de 2023

«cozido de couve» (nesse dia só havia)

 - outro (s) RECORTE(S) da leitura em curso:

     Na casa da Isora a comida era uma mixórdia. Arroz amarelo com coxas de frango com molho com peixe salgado com batatas com ovos e batatas com cebolas, reutilizadas das batatas guisadas do dia anterior, com rancho com cozido de agrião com batata com carne, tudo junto. Na casa da Isora a comida era uma mixórdia, mas nesse dia não, nesse dia só havia cozido de couve. [...] O cozido de couve já estava na mesa a fumegar. Eu não gostava nada de cozido de couve e muito menos se tivesse gofio por cima. Mas a Isora adorava e se ela metia gofio por cima eu também. [...] A Chela punha sempre à Isora um prato mais pequeno do que o meu porque dizia que a isora comia pelos olhos e que era preciso controlá-la, pois caso contrário desordenava-se-lhe a fome. A Isora acabou o cozido rápido rápido, e depois começou a ver como é que eu comia o meu. [..]

[sublinhados acrescentados]

Andrea Abreu, Pança de burro, Bertrand, 2023, pp. 87-88

sexta-feira, 2 de junho de 2023

«Todo o bacalhau é espiritual» (M. E. C.)

 - toda e qualquer a referência ao «Bacalhau Espiritual» remete R. para a C. da C. (78-80), para a Chefe Clot. [...] [«e o resto não se diz»]
RECORTE(s) da Crónica de hoje - «A conversa mais portuguesa»:
[...] Assim se dá origem à conversa mais portuguesa que é humanamente verificável:
"Isto está óptimo, mas podia ter mais um bocadinho de bacalhau, não?"
"Cala-te, que levou imenso bacalhau! Foi quase uma posta por patanisca, carago!"
[...]
Porque é que o bacalhau desaparece? Porque é que Deus deixa acontecer coisas horríveis? Porque é que a Milú não gosta do Zé Tó?
O bacalhau desaparece porque é um acto de magia. Aquilo era só um peixinho de lombinho aguado, feito para cozer e dar aos convalescentes. A verdade é que o bacalhau "não está lá". Foram o sal e o sol e a secura extrema que deram uma impressão de solidez e de peso.
Todo o bacalhau é espiritual. Estamos em constante negação dessa verdade. [...]
Miguel Esteves Cardoso, «Público», 02-06-2023