sábado, 25 de agosto de 2012

A cozinha de Françoise, parte II


  A pobre Caridade de Giotto [moça de cozinha], como lhe chamava Swann, encarregada pela Françoise de os [espargos] «pelar», tinha-os ao pé de si num cesto, e o seu aspecto era doloroso, como se sentisse todas as desgraças do mundo; as leves coroas de azul-celeste que cingiam os espargos por cima das suas túnicas cor-de-rosa estavam finamente desenhadas, estrela por estrela, tal como no fresco da Virtude de Pádua estão as flores engrinaldadas em redor da fronte ou espetadas no cesto. E entretanto a Françoise fazia girar no espeto um daqueles frangos como só ela sabia assar […]

[…] eu desci à cozinha, era um daqueles dias em que a Caridade de Gioto, muito combalida do seu parto recente, não era capaz de se levantar; a Françoise, agora já sem ajuda, estava atrasada. Quando cheguei lá abaixo estava ela, nos fundos da cozinha que davam para a capoeira, a matar um frango, o qual, com a sua resistência desesperada e muito natural, mas acompanhada pela Françoise fora de si, enquanto esta procurava cortar-lhe o pescoço debaixo da orelha aos gritos de «Maldito animal! Maldito animal!», punha a santa doçura e a unção da nossa criada um pouco menos em evidência do que o faria, no jantar do dia seguinte, pela sua pele bordada a ouro como uma casula e pelo seu molho precioso destilado de um cibório. Depois de morto o frango, a Françoise recolheu-lhe o sangue, que corria sem lhe afogar o rancor, teve ainda um sobressalto de cólera e, contemplando o cadáver do seu inimigo, disse ainda uma última vez: «Maldito animal!» tornei a subir a escada todo  a tremer;  o que me apetecia era que pusessem imediatamente a Françoise na rua. Mas quem me faria os pãezinhos tão quentes, um café tão perfumado e até… aqueles frangos?...   […]

Marcel Proust. Em busca do Tempo Perdido – (tradução de Pedro Tamen) Vol I – Do lado de Swann, Círculo de Leitores, 2003, pp. 130 – 131
 

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

ESPARGOS e a cozinha de Françoise - Parte I

[...] À hora em que eu descia para saber a ementa, já a confecção do jantar tinha começado, e a Françoise, comandando as forças da natureza, agora suas ajudantes, como nos contos de fadas em que os gigantes se  empregam como cozinheiros, activava as brasas, entregava ao vapor batatas para estufar e apurava ao fogo as obras-primas culinárias inicialmente preparadas em recipientes de ceramistas, que iam das grandes cubas, panelas, caldeirões e peixeiras às terrinas para a caça, formas de pastelaria  e potezinhos de natas, passando por uma colecção completa de caçarolas de todas as dimensões. Eu ficava parado a ver em cima da mesa, onde a moça de cozinha acabava de as descascar, as ervilhas alinhadas e contadas como berlindes verdes num jogo; mas o meu fascínio era diante dos espargos, temperados de azul-ultramarino e de cor-de-rosa, e cuja espiga, finamente pincelada de violeta e azul-celeste, se esbate pouco a pouco até ao pé - porém ainda manchado do chão do seu plantio - , através de irisões que não são da terra. Achava que estas tonalidades celestes denunciavam as deliciosas criaturas que se tinham divertido a metamorfosear-se em legumes e que através do disfarce da sua carne comestível e firme nos deixavam detectar, naquelas cores nascentes de aurora, naqueles esboços de arco-íris, naquela extinção de tardes azuis, essa preciosa essência que eu reconhecia ainda quando, durante toda a noite que se seguia a um jantar em que os tivesse comido, elas brincavam, nas suas farsas poéticas e grosseiras como um conto de fadas de Shakespeare, a transformar o meu vaso de noite num vaso de perfume.

Marcel Proust. Em busca do Tempo Perdido – (tradução de Pedro Tamen) Vol I – Do lado de Swann, Círculo de Leitores, 2003, pp. 129 – 130

 

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

A Mesa em Combray

[...] É que,  ao fundo permanente de ovos, de costeletas, de batatas, de compotas, de bolachas, que ela já nem sequer nos anunciava, a Françoise acrescentava - em conformidade  com os trabalhos dos camponeses e dos pomares, com o fruto da maré, com os acasos do comércio, com as gentilezas dos vizinhos e com o seu próprio génio, e tão bem que a nossa ementa [...] reflectia um pouco o ritmo das estações e dos episódios de vida - um rodovalho, porque a vendedora lhe garantira a frescura, um peru, porque tinha visto um bonito no mercado de Roussainville-le-Pin, carnudas alcachofras da horta, porque ainda não no-las tinha preparado daquela maneira, uma perna de carneiro assada porque o ar livre faz um buraco no estômago e ia passar muito tempo até descermos às sete horas, espinafres para variar, alperces porque eram ainda uma raridade, groselhas porque daí a quinze dias já não as haveria, framboesas que o senhor Swann trouxera de propósito, cerejas, as primeiras da cerejeira do jardim [...], queijo cremoso de que eu dantes gostava muito, um bolo de amêndoas porque o encomendara na véspera, um brioche porque era a nossa vez de o oferecer. Quando aquilo tudo acabava, era-nos proposto, preparado expressamente para nós, mas dedicado em especial ao meu pai, que era amador, um creme de chocolate, uma inspiração, uma atenção especial da Françoise, fugidia e leve como uma obra de circunstância, na qual ela pusera todo o seu talento. Quem se recusasse a prová-lo dizendo: «Acabei, já não tenho fome», seria imediatamente humilhado ao nível daqueles brutamontes que, até no presente que um artista lhes oferece de uma das suas obras, olham para o peso e para a matéria, quando o que vale é a intenção e a assinatura. Até deixar uma gota no prato seria uma prova da mesma indelicadeza que levantar-se antes do fim da peça nas barbas de um compositor. [...]

Marcel Proust. Em busca do Tempo Perdido – (tradução de Pedro Tamen) Vol I – Do lado de Swann, Círculo de Leitores, 2003, pp. 78 – 79

domingo, 12 de agosto de 2012

Fava-Rica

«Crónica Urbana- Beco dos Cavaleiros», Alexandra Prado Coelho, texto, João Catarino, Ilustração, «Revista 2», p. 41, Público, 12-08-2012

Além das referências ao único restaurante - na Mouraria - que ainda a serve e a Manolo Carrera - figura da comunidade Galega de Lisboa que G. conheceu nos idos Quentes de 75 e «adjacentes» -  um Recorte que o «transportou» para a Infância:


     [...]   É uma sopa que nos transporta para o tempo em que os trabalhadores de Lisboa acordavam de madrugada e comiam uma sopa quentinha, trazida pelas mulheres da fava-rica, numa panela protegida dentro de um cesto de verga, à cabeça. E transporta-nos para essa frase, que tanto ouvimos sem a percebermos bem: “…até vir a mulher da fava-rica”.

[…] as pessoas gostavam tanto da sopa que estavam dispostas a esperar o tempo que fosse preciso por ela. E a mulher, nesses tempos antigos, acabava mesmo por aparecer, apregoando: faaaava-riiica! Depois o pregão deixou de se ouvir, e as mulheres da fava-rica sobreviveram apenas em velhas fotos e gravuras. […]