segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Mangas («A negrinha-loira que vendia...»)

      «As mangas pesavam nas árvores, em cachos, penduradas por fios verdes. Pesavam muito gordas, rosadas, levando os ramos a tocar o chão. Da junção da manga a esse caule que a sustinha, escorriam gotas viscosas de resina transparente.

      As pretas vendiam mangas no chão, em fila, no bazar de Lourenço Marques. As pretas vendiam tudo no chão, em qualquer lado; estendiam uma capulana velha e faziam montinhos de tomates, de raízes, de mangas, de amendoim.
[...]
   Uma branca não vendia mangas a não ser por grosso, a outros brancos que as distribuíssem. Uma branca não vendia mangas, no chão, à porta. Mas eu era uma colonazinha preta, filha de brancos. Uma negrinha loira. E a colonazinha negra que eu era vendia montezinhos de mangas do lado de fora do portão da machamba. Três mangas, com mais uma empoleirada no topo. Quatro mangas: uma quinhenta. Eu sabia que era barato, mas convinha vencer a desconfiança dos negros que passavam a pé, [...] e se deparavam com a colonazinha sentada no chão, de pernas cruzadas, tomando conta da pequena venda de mangas, que assentava sobre um caixote virado, [...] Era preciso que o preço fosse muito atractivo para que ousassem perder o medo e aproximar-se da menina banca-negra como eles. «Quanto é?, perguntavam de longe. «Quinhenta», respondia. E então eles vinham, hesitantes, surpreendidos, mas sorridentes. Lembro o sorriso grande dos negros. O sorriso inteiro, com os dentes muito brancos de mascar ramos, E compravam. Eram as melhores mangas da minha mangueira, muito gordas de sumo e carne, muito coloridas de rosa e salmão. Só uma quinhenta. Quatro.
      Vender mangas ao portão, escondida da minha mãe, era um desobediência que não compreendia nem resistia a praticar.
        Era ser o que tinha nascido.»

Isabela Figueiredo, Caderno de memórias coloniais, 6.ª ed. (revista e aumentada), 2015, Caminho, pp. 68-70

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

"2-8-6!"

- na sequência da republicação (agora na «Santa») do texto em que A. M. Ribeiro refere Pessoa na  perspectiva de Luís Moitinho de Almeida, foi «reencontrado» um dos artigos que «repete, sem esclarecer definitivamente», o «papel» do Álcool em Pessoa 
- no caso, assinado por Pedro Anunciação, no Público de 11 de Nov. de 2002 - AQUI

Recorte:
[...] Fernando Pessoa viveu grande parte dos últimos 15 anos de vida naquela rua do bairro de Campo de Ourique. Extremamente tímido, crescentemente melancólico, Pessoa trocava umas palavras de circunstância enquanto puxava da garrafinha preta que guardava religiosamente na pasta de cabedal. "2-8-6!", pedia o poeta, enigmático. O senhor Trindade entregava-lhe os fósforos (dois tostões), os cigarros (oito tostões) e a garrafa atestada de bagaço (seis tostões). Pessoa agradecia, com a sua voz de catarro, as palavras cortadas aqui e ali pela tosse. Ele fumava pelo menos 80 cigarros por dia. Bebia como uma esponja. Com a sua reserva de 2-8-6 debaixo do braço, o poeta subia as escadas que conduziam ao seu mundo de papéis, personagens e fantasmas nocturnos.
[...]

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Cafés (as histórias dos...)

Café Santa Cruz, Coimbra - DIOGO BAPTISTA
Fotografia de um dos 23 «cafés históricos» - Livro e Roteiro - referenciados em artigo do Público

DAQUI

sábado, 29 de outubro de 2016

«um bacalhau de artista» (Alencar)

- «relembrado» por V. P. V. - AQUI

Recortes:
     [...] No Lawrence o jantar prolongou-se até às oito horas, com luzes; - e o Alencar falou sempre. Tinha esquecido nesse dia as desilusões da vida, (...) Do outro lado da mesa, os dois ingleses, correctos nos seus fraques pretos, de cravos brancos na botoeira, pasmavam, com um ar embaraçado a que se misturava desdém, para esta desordenada exuberância de meridional.
     A aparição do bacalhau foi um triunfo: - e a satisfação do poeta tão grande, que desejou mesmo, caramba, rapazes, que ali estivesse o Ega!
    - Sempre queria que ele provasse este bacalhau! Já que me não aprecia os versos, havia de me apreciar o cozinhado, que isto é um bacalhau de artista em toda a parte!... Noutro dia fi-lo lá em casa dos meus Cohens: (...)  Isto, filhos, a poesia e a cozinha são irmãs! [...] Pois vocês hão-de vir um dia destes jantar comigo e há-de vir o Ega, hei-de-vos arranjar umas perdizes à espanhola, que vos hão-de nascer castanholas nos dedos!... [...] O que se quer é coração. E o Ega tem-no. E tem faísca, tem rasgo, tem estilo... Pois, assim é que eles se querem, e lá vai à saúde do Ega!
     Pousou o copo, passou a mão pelos bigodes, e rosnou mais baixo:
    - E se aqueles ingleses continuam a embasbacar para mim, vai-lhes um copo na cara, e é aqui um vendaval, que há-de a Grã-Bretanha ficar sabendo o que é um poeta português!...
    Mas não houve vendaval, a Grã-Bretanha ficou sem saber o que é um poeta português, e o jantar terminou num café tranquilo. [...]
Eça de Queirós, Os Maias, Livros do Brasil, pp. 248-250

terça-feira, 4 de outubro de 2016

«lombo, feijoada, favas, grão e tinto» - V. Graça Moura + Vinicius

[Soneto relido num JL «antigo», após «Ultimato» da General Z para Eliminar «o papel Velho e cheio de ácaros» (exp. da Própria, nunca a Outra...)  que se acumulava num dos Cadeirões da Sala...]

pois eu gosto de lombo e feijoada,
favas e grão, e tudo o que indigesto
me faz sentir um cidadão honesto
na hora prandial e bem regada

do tinto das colheitas a que presto
a vénia palatal e reiterada,
sem esquecer qualquer bacalhoada, 
troixas de ovos, pudins e  tudo o resto

que até podem provar-nos que algum deus
afinal sempre existe e é cá dos meus
e às vezes me aproxima do vinicius

e pode mesmo ser que não se morra
assim da grande bouffe à tripa-forra,
e se faça um soneto a esses vícios...


Vasco Graça Moura

Nota: «Este poema foi escrito no tempo e nas circunstâncias que J. C. de Vasconcelos refere na sua coluna da p. 3 e de certa forma 'responde' ao de Vinicius que refere e que aqui se recorda:

Não Comerei de Alface a Verde Pétala
Nem da cenoura as hóstias desbotadas
Deixarei as pastagens às manadas
E a quem mais aprouver fazer dieta.

Cajus hei-de chupar, mangas-espadas
Talvez pouco elegantes para um poeta
Mas peras e maçãs, deixo-as ao esteta
Que acredita no cromo das saladas.

Não nasci ruminante como os bois
Nem como os coelhos, roedor; nasci
Omnívoro: deem-me feijão com arroz

E um bife, e um queijo forte, e parati
E eu morrerei feliz, do coração
De ter vivido sem comer em vão.

[transcritos da p. 11 da edição de 14 a 27 de maio de 2014, do dossiê dedicado a V. G. M.]

sexta-feira, 8 de julho de 2016

«Intratável» - Lucia Berlin

[em S. António; 12.º dia de M;
após a leitura dispersa, a sequencial - atingida a p. 327]

Recorte inicial do conto que Lydia Davis caracteriza como...    - DAQUI

    De noite, na mais profunda escuridão, os bares e as lojas de bebida estão fechados. Ela pôs a mão debaixo do colchão; a garrafa de meio litro de vodka estava vazia. Afastou os lençóis, levantou-se. Tremia tanto que se sentou no chão. Estava a hiperventilar. Se não bebesse nada, começaria com DT ou teria uma convulsão.
     O truque é abrandarmos a respiração e a frequência cardíaca. Mantermo-nos o mais calmos possível até que consigamos deitar mão a uma garrafa. Açucar. Chá com açucar, era isso que se recebia na desintoxicação. Mas ela tremia de mais para se aguentar de pé. Ficou deitada no chão, a inspirar profundamente, como no yoga. Não penses, céus, não penses no estado em que estás senão morres, de vergonha, de AVC. A sua respiração abrandou. Começou a ler lombadas de livros na sua estante. Concentra-te, lê em voz alta. Eduard Abbey, Chinua Achebe, Sherwood Anderson, Jane Austen, Paul Auster, não saltes nenhum, abranda. Quando acabou de ler a parede de livros, sentia-se melhor. Conseguiu levantar-se. Apoiada na parede, a tremer tanto que mal conseguia mexer os pés, conseguiu chegar à cozinha. [...]

Lucia Berlin, Manual para mulheres de limpeza, Alfaguara, 2016, p. 217

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

«Pessoana bêbeda, molhada...» - Castro Mendes

[fecha mais um dia de Envelopes]

PESSOANA BÊBEDA, MOLHADA EM CESÁRIO

Quem deixa a cinza espalhar-se
neste tempo que nos resta?
Bem pode o lume apagar-se,
se ninguém velou na festa...

Bebamos até ao fim
whisky, vinho malvasia,
para nos dar um verso enfim
com pão-de-ló de poesia.

Absinto nos teus braços,
pão-de-ló em malvasia!
Quebremos todos os laços:
beber é mais que poesia!

Luís Filipe Castro Mendes, Lendas da Índia, 2010, p. 55