quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Manjar - branco, dia negro


       […] E sendo o calor tanto, vão-se refrescando os assistentes, com a conhecida limonada, o geral púcaro de água, a talhada de melancia, que não seria por irem morrer aqueles que se consumiriam estes. E se o estômago pede recheio mais substancial, não faltam aí os tremoços e os pinhões, as queijadas e as tâmaras. El-rei, com os infantes seus manos e suas manas infantas, jantará na Inquisição depois de terminado o acto de fé, e estando já aliviado do seu incómodo honrará a mesa do inquisidor-mor,   soberbíssima de tigelas de caldo de galinha, de perdigões, de peitos de vitela, de pastelões, de pastéis de carneiro com açúcar e canela, de cozido à castelhana com tudo quanto lhe compete, e açafroado, de manjar-branco, e enfim doces fritos e frutas do tempo. Mas é tão sóbrio el-rei que não bebe vinho, e porque a melhor lição é sempre o bom exemplo, todos o tomam, o exemplo, o vinho não.

José Saramago, Memorial do Convento, 51.ª ed., 2011, pp. 65, 66

sábado, 18 de maio de 2013

Laranjada, vinho e toalha de mesa.

[T. tinha conservado a Visão de 11 de Março - que há muito só esporadicamente adquire - por causa desta narrativa, intitulada «Família», em princípio autobiográfica, de José Luís Peixoto]

começa assim:

A toalha de mesa era nova e só se usava nesses almoços de domingo. Havia uma garrafa de laranjada de vidro grosso ao centro da mesa, ao lado do vinho. Antes, o meu pai tinha-me mandado à venda. Levava uma alcofa com duas garrafas vazias. O cheiro do vinho tinto estava entranhado nas paredes. Nessas horas, fim da manhã de domingo, atravessava as fitas e não estava ninguém na venda, só a caixa das pastilhas de mentol e uma cadela que não se incomodava com a minha presença. Tinha de bater com a palma da mão no balcão, que me chegava à altura dos ombros, e, meio tímido, tinha de chamar: Ti Lourenço, Ti Lourenço. Quando chegava, trazia a sua calma e o seu bigode. Trocava a garrafa vazia de laranjada por uma cheia e acertava o gargalo da outra garrafa na torneira do barril. Eu pagava com o número certo de notas de vinte e moedas de cinco escudos.  [...]
e assim termina:
[...] A toalha de mesa é nova. A toalha de mesa é sempre nova.

A LER na CASA da Revista: AQUI



 

sábado, 20 de abril de 2013

NO CAFÉ DA MITOLOGIA - Nuno Júdice

NO CAFÉ DA MITOLOGIA

Perto da porta, as três Parcas pedem chá
e bolos. O criado mostra-lhes o casaco: o botão
pendurado por um fio, a cair. A mais velha
puxa o botão, rebentando
o fio; a do meio enfia a linha na agulha; e
a terceira recose o botão no casaco. As três
Parcas ficaram sem chá nem bolos; e o criado,
como é óbvio, ficou morto.

(Mas o casaco ficou impecável).

Nuno Júdice, Teoria geral do sentimento, 1999. Transcrito da p. 1016 de Poesia reunida, 1967 - 2000

quarta-feira, 6 de março de 2013

Fugir ao Fisco + Iogurte de Morango - Ana Paula Inácio


Homenagem a 4 poetas e 1 cineasta

Livra-me das tentações
de fugir aos fisco
e que em Fevereiro pague sempre
os meus impostos.
Afasta-me do supérfluo  e
da vaidade e recorda-me que
um dia hei-de ter hemorróidas.
E não me deixes cair no pecado
da ideologia
para que não leve com o proletariado nas trombas.
Guia-me pelos caminhos do amor
até um centro comercial
onde o amado me acompanhará
a experimentar um a um cada vestido.
E, por último, faz com que
todo o iogurte que coma seja
foda-se!
de morango.

 Ana Paula Inácio, 2010-2011, Averno, 2011 – transcrito de Resumo a poesia em 2011, Fnac, p. 17  (escolha de José Alberto Oliveira)
[na Tela, durante dois dias, enquanto enchiam os Envelopes; dos que olharam, a Maioria «não gostou» - talvez por ser recente, não estar nos «Sacrossantos» P. E.s - contudo, no fim do 4.º Bloco,  M. R. - para T. , a «N. H.»,  copiou-o para o seu Cancioneiro de Mão]
Well

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Sétimo Céu


[Recorte de quando Leonor ainda não fora «internada», com a mãe e a irmã, no Convento de S. Félix, em Chelas]

     «Leonor consegue a muito custo que a mãe a deixe ir com D.Brites buscar os doces encomendados ao Convento das Inglesinhas. Batem com a pesada aldraba do grande portão que dá para a Rua de Buenos Aires, distraindo-se a menina, enquanto esperam, a olhar as corvetas, as galeotas e as faluas transportando barris de madeira, a cruzarem as águas encapeladas do Tejo, empurradas pelo vento agreste que trepa as colinas com desembaraço, limpando os ares dos fedores e miasmas [...]
    A Leonor, que segue cuidando evitar a gravilha para não magoar os  pés mal defendidos pelos finos sapatos, chega um persistente cheiro adocicado, numa mistura de suor, de mênstruo e de fruto sovado, que a jovem freira à sua frente solta ao ondular o hábito com o passo ligeiro
     Mal entram na largueza espaçosa são apanhados de chofre pela intensidade de novos aromas entre si entrançados: o do arroz-doce a cozer devagar no leite encorpado, o do empadão de lebre a sair do forno e o do guisado de aves. Odores a contrastarem com a delicadeza da água de rosas a ferver com açucar, o do manjar branco e dos queijinhos do céu acabados de saírem do fogo.
    Enquanto D. Brites está de conversa com as irmãs cozinheiras, Leonor passeia devagar os olhos gulosos ao longo de duas grandes mesas de mármore, uma repleta de sopeiras fumegantes, de terrinas de caldo de galinha gorda, de travessas de arroz de coelho, e a outra só com sobremesas: covilhetes de marmelada, pratinhos de rebuçados de ovos e caramelos, pratos de louça da Índia com cogulos de pão-de-ló e bolo podre, taças de vidro coalhado com leite  de sericaia e ovos moles.  
      De súbito, porém, algo indefinível muda à sua roda, e ela detecta um novo perfume a libertá-la da roda de doces ainda quentes, do cheiro macerado da carne em vinha-d'alhos, do acre das especiarias, da aspereza da erva cidreira. Essência de chuva que a deixa perplexa e a leva a segui-lhe o rasto, que se tinge primeiro de romã e em seguida de lápis-lazúli. Poalha dourada a levantar-se, esparsa por uma aragem equívoca, espécie de mansa corrente de ar que a faz virar-se para trás receosa

        Maria Teresa Horta. As Luzes de Leonor. Lx, D. Quixote, Maio de 2011, pp. 29-30