domingo, 23 de setembro de 2012

O legume

[foi uma das Aberturas da «Época de Caça;
 
- quanto à estatística dos que leram («passar os olhos não conta») a Obra-Tijolo, mesmo que só uns parágrafos, é melhor não a referir; não só T. tem mais em que se ocupar como «o resto não se diz»...
- ridente Jardim, Palácio das Estatísticas...]

Todos cortesmente admiraram a finura do Cohen. Ele agradecia, com o olho enternecido, passando pelas suiças a mão onde reluzia um diamante. E nesse momento os criados serviam um prato de ervilhas num molho branco, murmurando:

- Petits pois à la Cohen.

À la Cohen? Cada um verificou o seu menu mais atentamente. E lá estava, era o legume: Petit pois à la Cohen. Dâmaso, entusiasmado, declarou isto «chique a valer!» E fez-se, com o champagne que se abria, a primeira saúde ao Cohen!

Esquecera-se a bancarrota, a invasão, a pátria - o jantar terminava alegremente. Outras saúdes cruzaram-se, ardentes e loquazes: o próprio Cohen, com o sorriso de quem cede a um capricho de criança, bebeu à Revolução e à Anarquia, brinde complicado, que o Ega erguera, já com o olho muito brilhante. Sobre a toalha, a sobremesa alastrava-se, destroçada; no prato do Alencar as pontas de cigarros misturavam-se a bocados de ananás mastigado. Dâmaso, todo debruçado sobre Carlos, fazia-lhe o elogio da parelha inglesa, e daquele faetonte que era a coisa mais linda que passeava Lisboa. E logo depois do seu brinde de demagogo, sem razão, Ega arremetera contra Craft, injuriando a Inglaterra, querendo excluí-la de entre as nações pensantes, ameaçando-a de uma revolução social que a ensoparia em sangue: o outro respondia com acenos de cabeça, imperturbável, partindo nozes.

Os criados serviram o café. E como havia já três longas horas que estavam à mesa, todos se ergueram, acabando os charutos, conversando, na animação viva que dera o champagne. A sala, de tecto baixo, com os cinco bicos de gás ardendo largamente, enchera-se de um calor pesado, onde se ia espalhando agora o aroma forte das chartreu-ses e dos licores por entre a névoa alvadia do fumo.
 
Eça de Queirós, Os Maias, Livros do Brasil, pp. 170-171
 

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