domingo, 6 de maio de 2012

«A janela da cozinha...» - Luísa Costa Gomes

Conto de Luísa Costa Gomes
- que pode ser lido, na íntegra, no endereço colocado após o Recorte inicial [...]

A primeira coisa que embateu nos olhos de Luisinho ao entrar foi a mesa relhena. A grande mesa oval, bem assente no meio da sala, a transbordar de doçaria e delicadezas. E enquanto os outros miúdos se atiçavam uns contra os outros e saltavam aos gritos por cima dos sofás, Luisinho fora o singular a ir direito ao que mais o comovia e especado diante da mesa posta, religioso ficou a deixar entrar pelas retinas toda aquela pompa e grandeza. E viu, destacada do todo, antes do mais a taça de cristal, redonda, muito trabalhada,  da musse de chocolate coberta de nozes; a seu lado, o monumento da tarde, um bolo imenso de claras com morangos e natas batidas, camadas de diversas naturezas sobrepostas, todas elas boas, todas elas harmoniosas, conjugadas num macio cilindro branco que fazia sonhar; vinham depois, deitadas num prato de porcelana chinesa, por cima de uma suspeita de luta entre dragões, as cornucópias, recheadas com doce de ovos. Quase se embaciam os óculos do Luisinho ao contemplar as taças de gelado feito em casa, na máquina de manivela, com sabores de café, de morango, de chocolate, de natas, dispersas sobre a mesa, quase livres de irem para onde lhes apetecesse, mais para junto da travessa dos rolinhos de pão-de-forma com atum e maionese, mais para longe do bolo enfeitado com ziguezagues de natas, por baixo das quais se sabia estarem um pão-de-ló que não podia sem exagero ser mais amarelo e um creme de manteiga pecaminoso Desfalece o coração de Luisinho, imune ao caos infantil a que na sala velozmente se chega, ao passar os olhos sobre os três pratos grandes, cama real das sanduíches aparadas,com fiambre e fuagrá autêntico. Recapitulou, saltando a bandeja dos biscoitos de manteiga, que é comida de miúdo e o palhaço de gelatina, transigência inaceitável ao paladar selvagem. E demorou-se com prazer no bolo que ele já conhecia, musse cozida no forno, coberta de chocolate. Na mesinha de apoio, em formação cerrada, os jarros de limonada com muito gelo, sumo de laranja para os menos exigentes, chá gelado e mazagrã para as mães.

Luisinho saiu do devaneio com a miudagem a chegar-se à mesa. Teve um repentino movimento de irritação e afastou, em dupla cotovelada, dois rapazinhos  gémeos, que repetiram o assalto. Luisinho acabou por se render à evidência de que o arranjo perfeito daquela mesa seria, daí em diante, não mais que uma lembrança. Os bárbaros atacavam as sanduíches, davam cabo do palhaço e descompunham o bolo de claras. [...]

   Luísa Costa Gomes, «A janela da cozinha como argumento moral, in Contos outra vez, Cotovia, 1997, pp. 45 - 52 -     CONTO COMPLETO: AQUI

Eduardo Lourenço:
[...] conto antológico [...] história de um menino bulímico, [...] para quem o mundo tem a consistência de um bolo que ele devora e por quem é devorado, alegoria cruel do nosso mundo de ricos de tudo e de tudo esfomeados»
in «Idos de Setembro», prefácio a Setembro - e outros contos, D. Quixote, 2007, p. 10

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