sábado, 23 de outubro de 2021

Cabidela (o sangue para a), Nuno Júdice

 PRELÚDIO E VARIAÇÕES

Quando as cozinheiras cortavam o pescoço
da galinha e deixavam o sangue correr para
uma tigela de barro, uma agarrava a cabeça e a outra
prendia as asas. Assim, a operação era feita
com toda a limpeza, e eu via os olhos da galinha
perderem a cor até ao instante em que a faca
chegava ao fim, separando a cabeça
do corpo. Ainda nessa manhã, eu tinha visto
a mesma galinha no pátio, atrás do milho que lhe 
atiravam, com a felicidade de nem sonhar 
com o que lhe ia acontecer. De qualquer modo,
explicou-me um biólogo, as galinhas não sonham,
o que explica o facto de não voarem, apesar de
terem asas como as águias ou os anjos. É
por isso que o filósofos, que sonham o ideal
e a abstracção, se parecem com as galinhas: de
que lhes servem as asas do pensamento
se, tal como as aves de capoeira, não saem
do chão? E pergunto-me se não teria sido por isso que,
na revolução francesa, houve quem confundisse
os filósofos com as galinhas cortando-lhes as cabeças,
embora com o desperdício de não guardarem 
o sangue para a cabidela. 

Nuno Júdice, Navegação do acaso, D. Quixote, 2013, p. 60 

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