sexta-feira, 15 de março de 2024

«a memória dos sabores» (Paulo Moreiras)

 - [leitura «intercalada»; de rápida natureza, sobretudo pelas manhãs, pelos transportes [...]; alcançada a p. 67 [de 226]

RECORTE(s):
    Com o propósito de aferir a qualidade do seu palato, Domingos Rodrigues desenvolveu alguns exercícios para Saturnino. Não tardou a descobrir [...] que o filho evidenciava um apurado sentido do gosto, capaz de decifrar os nove sabores que os filósofos preconizavam existir: os três cálidos, os três frios e os três temperados. [...] Não havia prato, por mais complexo que se apresentasse, em que Saturnino não descortinasse todos os ingredientes e especiarias [...] Se fosse carneiro estufado, por exemplo, saboreava um pouco da carne e do caldo, [...] e logo enumerava o meio arrátel de toucinho, as duas cabeças de alho, o marmelo cortado em quartos, as duas maçãs,  a canela, a pimenta, o gengibre, o cravo-da-índia, a noz-moscada, as duas folhas de louro e o sal necessário, sem esquecer de referir o pequeno golpe de vinho, de vinagre e de sumo de limão [...] tão fundamentais para enriquecer os sabores e mundificar os aromas. Até mesmo a partir de um simples pedaço de marmelada comum Saturnino conseguia decifrar se lhe haviam adicionado um tanto de âmbar ou de almíscar. Bastava-lhe provar as iguarias somente uma vez, que logo a memória do seu sabor ficava guardada como se fosse gravada em pedra. Um prodígio da sua faculdade de alma, virtuosa tesoureira do espírito.

Paulo Moreiras, Os dias de Saturno, pp. 65-66

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.