segunda-feira, 18 de março de 2024

Cafés (No tempo dos); Nuno Júdice

 - poema - lista, de Autores...; sublinhados acrescentados

 NO TEMPO DOS CAFÉS

Entreabri a porta, sem saber o que iria encontrar. As mesas
estavam cheias, e quase não se ouviam as conversas com o ruído
das chávenas, das vozes que vinham dos bilhares, dos gritos de
quem chamava os criados que passavam sem se importarem 
com ninguém. Era um tempo a preto e branco, e talvez fosse 
por isso que o ruy belo olhava à volta a ver se conhecia alguém, 
o alexandre pinheiro torres espreitava para o relógio apenas
para confirmar se estava na hora certa, o augusto abelaira
discutia a literatura francesa com os que preferiam 
a literatura inglesa, como o carlos de oliveira que lia
as irmãs bronte sem se decidir por nenhuma 
delas. Não sei de que lugar da eternidade me falam
como se eu ouvisse o que têm para me dizer. Queria era
perguntar ao ruy o que irá fazer no regresso a madrid, agora
que madrid perdeu a movida, ao alexandre se ainda sabe 
alguma coisa da leonor de almeida, perdida nalgum recanto
da dinamarca, e ao carlos se já escolheu a qual das bronte
irá emprestar a casa que construiu na finisterra. E 
queria empurrar a porta do café, passar por entre a chuva
de meteoros, evitar o buraco negro onde o herberto
helder está escondido, só para que ninguém lhe pergunte
nada, aproveitar para perguntar ao cardoso pires porque
é que nunca tinha escrito um poema, ao contrário
do pessoa, que não era da predilecção do josé gomes
ferreira que, na realidade, ainda tinha o remorso de não 
se ter declarado à florbela. E o que me começa
a fazer falta é o caderno de pautado francês da luiza neto jorge,
a forma pausada como a fiama falava do bernardim,
como se tivesse estado com ele no seu jardim, e aquele horizonte
para lá do tejo onde ficava a outra margem em que ouvi cantar
o zeca afonso com a polícia à porta, e alguns lugares
em que perdi não sei bem o quê ao meter-me no barco
de volta contigo, em vez de fugir para onde me querias
levar. Assim, continuo sem entrar nem sair
desta porta que insiste em não fechar, quando a empurro,
deixando vazia, no café que já não existe, a cadeira
onde me irei sentar.

Nuno Júdice, Uma colheita de silêncios, 2023, pp. 19-20

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