quinta-feira, 21 de novembro de 2024

«O mais velho cozinheiro...»

 - Crónica de Luís Osório, no «Postal do Dia» - Adriano Jordão evoca o «peixe cozido que tanto trabalho deu num restaurante de luxo...»]; [AQUI, no YT, também]; + artigo na «Mensagem de Lisboa» (Maio)

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

«arroz de amêndoas», H. A. Faciolince

- [alcançada a p. 86, de 359]

RECORTE(s)

(...) A rapariga fizera-lhe para jantar, de acordo com as minhas instruções, uma posta de bagre branco cozido, sem sal, mas com muitos coentros, duas batatinhas amarelas também cozidas, com casca (...) e uma salada de alho-francês e tomate verde com vinagre e duas gotas de azeite. Mas a mim fez-me um arroz de amêndoas, fervido em caldo de entrecosto e cebola, que libertava um aroma delicioso, pernicioso, e, em vez de mo servir no prato, como eu lhe pedira, colocou uma travessa inteira do suculento arroz bem no meio da mesa, a uma distância equidistante entre o meu prato e o do Luís. [...] 
     Depois de provar um bocadinho do seu peixe insípido, o Gordo, muito lesto, semicerrou os olhos e alongou o braço, pegou avidamente na colher de servir e, lambendo os beiços, serviu no próprio prato não uma, nem duas, mas quatro colheradas de arroz de amêndoas. Pegou no garfo com uma avidez e uma ânsia que me eram desconhecidas, e começou a encher vorazmente a boca com garfadas repletas desse aromático manjar das Arábias.[...]

[sublinhados acrescentados]

Héctor Abad Faciolince, Salvo o meu coração, tudo está bem, pp. 50-51

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

«O mármore e o sangue», Palomar

 - [outro(s) recorte(s) de uma das releituras do momento: Palomar, de I.Calvino]:

   [...] Uma devoção reverente por tudo aquilo que diz respeito à carne guia o senhor Palomar, que se prepara para comprar três bifes. Rodeado pelos mármores do talho, permanece como se estivesse num templo, consciente de que a sua existência individual e a cultura a que pertence estão condicionadas por aquele lugar.
 Uma sombra de cumplicidade viciosa paira sobre o ambiente: o [...]
     [...] Esta loja é um museu: ao visitá-la, o senhor Palomar sente. [...] 
    Esta loja é um dicionário; a língua é o sistema dos queijos no seu conjunto ; uma língua cuja . [...]

[sublinhados acrescentados; do texto «O mármore e o sangue», 3.º de  «Palomar vai ás compras» (II «sub-parte» da II parte, «PALOMAR NA CIDADE»)

Italo Calvino (1923-1985), Palomar [1983], 2021, D. Quixote, pp. 94 - 95

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

«O museu dos queijos», Palomar, Calvino

  - [outro(s) recorte(s) de uma das releituras do momento: Palomar, de I.Calvino]:

     O senhor Palomar está na bicha de uma loja de queijos, em Paris. Pretende comprar certos queijinhos de cabra que se conservam em óleo dentro de pequenos recipientes transparentes, temperados com especiarias várias e com certas ervas. [...] 
    Uma sombra de cumplicidade viciosa paira sobre o ambiente: o requinte gustativo e sobretudo o requinte olfactivo  conhecem os seus momentos de abandono, de fácil sedução, nos quais, os queijos, sobre os seus tabuleiros, parecem oferecer-se como se estivessem sobre os divãs de um lupanar. Um esgar perverso aflora no regozijo com que se avilta o objecto da gula, atribuindo-lhe epítetos infamantes: crottin, boule de moine, bouton de culotte. [...]
     [...] Esta loja é um museu: ao visitá-la, o senhor Palomar sente, tal como no Louvre .que por detrás de cada objecto exposto está a presença da civilização que lhe deu forma e que lhe toma forma. [...] 
    Esta loja é um dicionário; a língua é o sistema dos queijos no seu conjunto ; uma língua cuja morfologia regista declinações e conjugações com inumeráveis variantes e cujo léxico apresenta uma riqueza inesgotável de sinónimos, usos idiomáticos, conotações e cambiantes de significado, como todas as línguas alimentadas pela contribuição de cem dialectos. [...]

[sublinhados acrescentados; do texto «O  museu dos queijos», 2.º de  «Palomar vai ás compras» (II «sub-parte» da II parte, «PALOMAR NA CIDADE»)

Italo Calvino (1923-1985), Palomar [1983], 2021, D. Quixote, pp. 89 - 92

domingo, 15 de setembro de 2024

Libações (primeiras); Beauvoir

   [alcançada a p. 321, na quinta, à tarde, na Luz]

RECORTE(s)

     Não fomos ao cinema. Jacques levou-me ao Stryx, na Rua Huyghens, onde era freguês [...] Ele chamava o criado pelo nome, Michel, e pediu para mim um Martini. Nunca pusera os pés num café e eis que me encontrava à noite num bar, com dois rapazes: para mim era realmente uma coisa extraordinária. As garrafas de cores tímidas ou violentas, as tigelas com azeitonas ou amêndoas salgadas, as pequenas mesas, tudo me espantava [...] Engoli rapidamente o meu cocktail e, como nunca bebera uma gota de álcool, nem sequer vinho, de que não gostava, depressa levantei os pés da terra. Chamei Michel pelo seu nome e expandi-me. [...] Eu falava com os clientes, que eram uns nórdicos jovens e calmos. Um deles ofereceu-me um segundo Martini, que, depois de um sinal de Jacques, despejei atrás do balcão. Para estar à altura, parti dois ou três copos. Jacques ria e eu sentia-me nas nuvens. Fomos ao Vickings. [..] Ensinou-me o póquer de dados e pediu para mim um gin-fizz com muito pouco gim: eu submetia-me amorosamente à sua vigilância. O tempo não existia: já eram duas horas, quando bebi, ao balcão da Rotonde, uma menta verde. À minha volta esvoaçavam rostos surgidos de outro mundo; havia milagres em todas as esquinas. [...]

[sublinhados acrescentados]

Simone de Beauvoir (1908-1986), Memórias de uma menina bem-comportada (1958), 2023, pp. 312-313

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

«Galões e Cafés» (J. M. F. Jorge)

 GALÕES E CAFÉS

Nunca vi uma camisa de um branco
tão exaltante, como a daquele que
trabalhava no bar da aerogare do
Pico.
Manhã cedo dividia o azul cinzento
dos olhos pelos galões e cafés que 
servia.
Corava quando alguém reparava nele
para além do mover das moedas,
dos galões e cafés, dos pãezinhos
com queijo ou fiambre e da muita
manteiga que sempre queriam.
Mordeu os lábios
porque o emigrante que trazia grande
quantidade de dinheiro amoedado lhe
deixou com desprezo  protector os
tostões que não queria levar para 
as Américas.
Ninguém reparou nele naquela manhã
do Pico, ali, na aerogare compartimentada
de vinhas e rasteiros pinheiros.
Às vezes
um sorriso maior prendia a habilidade
das suas mãos entre galões e cafés.
Ninguém repara nele. Eu mesmo o
deixei depois de ter bebido o
café que me servira.
Troquei-o, tão facilmente, como o 
mercador português que ia para Boston a
remoer dinheiro e deprecações.
Eu próprio o deixei por um curto voo 
para a ilha Terceira.
Moverão moedas ainda os seus dedos
P'lo azul cinzento das manhãs no Pico?

João Miguel Fernandes Jorge, Antologia dos poemas, 2019, pp. 86-87
[comentado em: Frederico Pereira, Um virar de costas sedutor, 2022, p.  170]

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

«Jantar em Alcabideche» (J. M. F. Jorge)

 JANTAR EM ALCABIDECHE

Estavam os meus amigos. E, todos, mais
ou menos bêbados. As mãos brincavam com
as facas, apertavam os copos entre os
dedos, espremiam limão sobre os peixes
grelhados. Os gestos, a alegria
do encontro tornara-os tenros e desajeitados.
Mais do que dirigindo-nos a nós próprios,
fazíamo-lo para uma presença imaginária,
a secreta corrente que cada um unia; e,
mais secretamente ainda, dois e três escondia.
Depois, não há como o álcool,
o vinho branco escolhido – que não fôra
excelente – para fazer querer
ser o eu presente o verdadeiro eu;
e que, até então, sempre permanecera
escondido.
Os meus amigos falam, falam todos ao mesmo
tempo e não se entendem.
E quanto mais querem dizer mais abraços dão.
Riem e chegam mesmo a participar, felizes,
na união em cada um;
meio perdidos no seu sonho de representação
de si, não procuram mais do que provar, e
provar aos outros, uma única coisa: cada um
é o mais fiel naquele jantar,
Eu, quase sempre, permaneci alheio e
olhava-os, como vocês, leitores,
nos estão a olhar agora.

João Miguel Fernandes Jorge, Antologia dos poemas, 2019, p. 75
[comentado em: Frederico Pereira, Um virar de costas sedutor, 2022, pp. 166 - 170]

domingo, 11 de agosto de 2024

«Chocos com tinta»

 RECORTE (s) do Caderno materno:

     Eu estava bastante nervosa, para dizer a verdade, porque ainda não domino bem os costumes espanhóis [...]. Por exemplo: no nosso país, praticamente nunca se come peixe e os uruguaios detestam qualquer coisa que tenha espinhas. Aqui, ficam loucos com uma boa pescada. No Uruguai, o frango é um artigo de luxo e é muito distinto servi-lo num jantar e, aqui, é algo muito comum, quase banal [...]. Depois vem esse hábito espanhol de comer lentilhas, feijões ou grão-de-bico, mesmo nas melhores casas, algo que não ocorreria nem ao último trabalhador da exploração agrícola mais remota do Uruguai. Já para não falar de alguns pratos espanhóis que eu não me atreveria a experimentar nem que estivesse a morrer de fome no meio do deserto, como aqueles chocos com tinta que parecem mergulhados em lubrificante para automóveis, ou uns vermes que, segundo eles, são muito bons e se chamam meixões.

Carmen Posadas, Gervasio Posadas, Hoje caviar, amanhã sardinhas [2008], 2024, p. 54 - 55
[RECORTE]; [OUTRO]; os irmãos em Portugal;

quinta-feira, 18 de julho de 2024

«património micológico», Rosa Oliveira

património micológico

Teofrasto chamou-lhes plantas
        imperfeitas quase ausentes
quilómetros de comprimento
        cabeça ascendente do subterrâneo
pequenas flores coloridas
        entre seres mais próximos dos animais
do que das plantas

outrora carne de pobres
agora carne de ricos
voaram dos manuais de botânica,
habitados por criaturas mágicas
que a brisa espalha pelos
quatro cantos do mundo redondo

a multidão incógnita de apanhadores
avança sobre folhas mortas
de bosques taciturnos
prontos a espetarem
o gume
vegetal acerado
nos corações em repouso
na cesta de vime

Rosa Oliveira, DESVIO-ME DA BALA QUE CHEGA TODOS OS DIAS, 2021, p.31

sexta-feira, 12 de julho de 2024

A última refeição (A ultima lua..., M. L. Sousa)

 «Destapa as terrinas e as cuias, vê condimentado o thiof fresco que lhe mandaram do Senegal, seu pescado predilecto, aquele que entre os peixes mais tem sabor a rocha, costuma dizer, recheado de ervas e pimentas, olha guloso para o arroz amarelo nadando em óleo de palmito, para a tigela de molho avermelhado de malagueta, e sorri. De convido, descobre sob a toalha branca no meio da mesa uma gamela de mandioca, cenoura, batata-doce, inhame e repolho. Serve por ordem: arroz, verduras, peixe e molho. Come sozinho. Mastiga sofregamente, saboreia cada bocado até à raiz da saliva, toma uns goles do vinho ácido argelino, limpa os lábios com um paninho alvo, e compenetra-se como se esta fosse a sua última refeição. Arruma as espinhas num  canto do prato, cobre a sobra com uma ponta da toalha, leva a loiça à cozinha, lava-a na bandeja de plástico dentro da pia, suspende o bule sobre o carvão, serve uma xícara de café como postre e bebe a olhar para a banheira velha de esmalte coberta de folhas podres no quintal. [...]»

     Mário Lúcio Sousa,  A última lua de homem grande, 2022, p. 107;  [OUTRO]

domingo, 23 de junho de 2024

«as múltiplas formas de comer um figo», segundo D. H. Lawrence (N. Júdice)

 OS FIGOS DE D. H. LAWRENCE

Lawrence aconselhou a que se partisse um figo
em quatro pedaços, para o comer, depois de deitar fora
a casca. Deste modo, pensava ele, a sociedade não veria com 
maus olhos o gesto de cortar o figo, e de o
saborear lentamente, como quem lê um poema. Mas 
nem todos os figos se podem comer desta maneira; e,
no caso dos figos verdes, o melhor é tirar-lhes a pele a 
partir de cima, sem que ela se desprenda completamente
do fruto; e, só depois de comer a parte de cima, é que
chegará o momento em que só vai ficar um pouco de figo
a segurar a casca. Nessa altura, pode-se arrancá-la e acabar
de comer o que sobra, para que a refeição fique completa.

De facto, lawrence também admite esta solução (e
aceita que se coma também a casca); mas teremos
de ir mais longe do que ele. o que significa
que se deve também pensar na figueira. [...]

[incompleto]

Nuno Júdice, As coisas mais simples, 2006, transcrito das pp. 146-147 de 50 anos de poesia  - Antologia, 2022

segunda-feira, 18 de março de 2024

Cafés (No tempo dos); Nuno Júdice

 - poema - lista, de Autores...; sublinhados acrescentados

 NO TEMPO DOS CAFÉS

Entreabri a porta, sem saber o que iria encontrar. As mesas
estavam cheias, e quase não se ouviam as conversas com o ruído
das chávenas, das vozes que vinham dos bilhares, dos gritos de
quem chamava os criados que passavam sem se importarem 
com ninguém. Era um tempo a preto e branco, e talvez fosse 
por isso que o ruy belo olhava à volta a ver se conhecia alguém, 
o alexandre pinheiro torres espreitava para o relógio apenas
para confirmar se estava na hora certa, o augusto abelaira
discutia a literatura francesa com os que preferiam 
a literatura inglesa, como o carlos de oliveira que lia
as irmãs bronte sem se decidir por nenhuma 
delas. Não sei de que lugar da eternidade me falam
como se eu ouvisse o que têm para me dizer. Queria era
perguntar ao ruy o que irá fazer no regresso a madrid, agora
que madrid perdeu a movida, ao alexandre se ainda sabe 
alguma coisa da leonor de almeida, perdida nalgum recanto
da dinamarca, e ao carlos se já escolheu a qual das bronte
irá emprestar a casa que construiu na finisterra. E 
queria empurrar a porta do café, passar por entre a chuva
de meteoros, evitar o buraco negro onde o herberto
helder está escondido, só para que ninguém lhe pergunte
nada, aproveitar para perguntar ao cardoso pires porque
é que nunca tinha escrito um poema, ao contrário
do pessoa, que não era da predilecção do josé gomes
ferreira que, na realidade, ainda tinha o remorso de não 
se ter declarado à florbela. E o que me começa
a fazer falta é o caderno de pautado francês da luiza neto jorge,
a forma pausada como a fiama falava do bernardim,
como se tivesse estado com ele no seu jardim, e aquele horizonte
para lá do tejo onde ficava a outra margem em que ouvi cantar
o zeca afonso com a polícia à porta, e alguns lugares
em que perdi não sei bem o quê ao meter-me no barco
de volta contigo, em vez de fugir para onde me querias
levar. Assim, continuo sem entrar nem sair
desta porta que insiste em não fechar, quando a empurro,
deixando vazia, no café que já não existe, a cadeira
onde me irei sentar.

Nuno Júdice, Uma colheita de silêncios, 2023, pp. 19-20

sexta-feira, 15 de março de 2024

«a memória dos sabores» (Paulo Moreiras)

 - [leitura «intercalada»; de rápida natureza, sobretudo pelas manhãs, pelos transportes [...]; alcançada a p. 67 [de 226]

RECORTE(s):
    Com o propósito de aferir a qualidade do seu palato, Domingos Rodrigues desenvolveu alguns exercícios para Saturnino. Não tardou a descobrir [...] que o filho evidenciava um apurado sentido do gosto, capaz de decifrar os nove sabores que os filósofos preconizavam existir: os três cálidos, os três frios e os três temperados. [...] Não havia prato, por mais complexo que se apresentasse, em que Saturnino não descortinasse todos os ingredientes e especiarias [...] Se fosse carneiro estufado, por exemplo, saboreava um pouco da carne e do caldo, [...] e logo enumerava o meio arrátel de toucinho, as duas cabeças de alho, o marmelo cortado em quartos, as duas maçãs,  a canela, a pimenta, o gengibre, o cravo-da-índia, a noz-moscada, as duas folhas de louro e o sal necessário, sem esquecer de referir o pequeno golpe de vinho, de vinagre e de sumo de limão [...] tão fundamentais para enriquecer os sabores e mundificar os aromas. Até mesmo a partir de um simples pedaço de marmelada comum Saturnino conseguia decifrar se lhe haviam adicionado um tanto de âmbar ou de almíscar. Bastava-lhe provar as iguarias somente uma vez, que logo a memória do seu sabor ficava guardada como se fosse gravada em pedra. Um prodígio da sua faculdade de alma, virtuosa tesoureira do espírito.

Paulo Moreiras, Os dias de Saturno, pp. 65-66

sábado, 13 de janeiro de 2024

«A laranja de Nafarros», M. E. C.

- RECORTE(s) da crónica de hoje, de MEC, no «Público»:

[...]Quando o meu pai, Joaquim, comia uma laranja, até as janelas tinham vergonha. Fugíamos para não ouvir o ruído hidráulico dos gomos a serem lentamente triturados, numa lenta mastigação que o meu pai tinha roubado aos ruminantes do Ribatejo.
[...] À mesa, gosto de abrir as laranjas como um cirurgião plástico, dilacerando a casca com perícia, para expor os gomos e decidir como vai ser o corte final antes de entrar para a boca. [...]