A pobre Caridade de Giotto [moça de cozinha],
como lhe chamava Swann, encarregada pela Françoise de os [espargos] «pelar»,
tinha-os ao pé de si num cesto, e o seu aspecto era doloroso, como se sentisse
todas as desgraças do mundo; as leves coroas de azul-celeste que cingiam os
espargos por cima das suas túnicas cor-de-rosa estavam finamente desenhadas,
estrela por estrela, tal como no fresco da Virtude de Pádua estão as flores
engrinaldadas em redor da fronte ou espetadas no cesto. E entretanto a
Françoise fazia girar no espeto um daqueles frangos como só ela sabia assar […]
[…] eu desci à
cozinha, era um daqueles dias em que a Caridade de Gioto, muito combalida do
seu parto recente, não era capaz de se levantar; a Françoise, agora já sem
ajuda, estava atrasada. Quando cheguei lá abaixo estava ela, nos fundos da
cozinha que davam para a capoeira, a matar um frango, o qual, com a sua
resistência desesperada e muito natural, mas acompanhada pela Françoise fora de
si, enquanto esta procurava cortar-lhe o pescoço debaixo da orelha aos gritos
de «Maldito animal! Maldito animal!», punha a santa doçura e a unção da nossa
criada um pouco menos em evidência do que o faria, no jantar do dia seguinte,
pela sua pele bordada a ouro como uma casula e pelo seu molho precioso
destilado de um cibório. Depois de morto o frango, a Françoise recolheu-lhe o
sangue, que corria sem lhe afogar o rancor, teve ainda um sobressalto de cólera
e, contemplando o cadáver do seu inimigo, disse ainda uma última vez: «Maldito
animal!» tornei a subir a escada todo a
tremer; o que me apetecia era que
pusessem imediatamente a Françoise na rua. Mas quem me faria os pãezinhos tão
quentes, um café tão perfumado e até… aqueles frangos?... […]
Marcel Proust. Em busca do Tempo Perdido – (tradução de Pedro Tamen) Vol I – Do lado de Swann, Círculo de Leitores, 2003, pp. 130 – 131
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