Conto de Luísa Costa Gomes
- que pode ser lido, na íntegra, no endereço colocado após o Recorte inicial [...]
- que pode ser lido, na íntegra, no endereço colocado após o Recorte inicial [...]
A primeira coisa que embateu nos
olhos de Luisinho ao entrar foi a mesa relhena. A grande mesa oval, bem assente
no meio da sala, a transbordar de doçaria e delicadezas. E enquanto os outros
miúdos se atiçavam uns contra os outros e saltavam aos gritos por cima dos
sofás, Luisinho fora o singular a ir direito ao que mais o comovia e especado
diante da mesa posta, religioso ficou a deixar entrar pelas retinas toda aquela
pompa e grandeza. E viu, destacada do todo, antes do mais a taça de cristal,
redonda, muito trabalhada, da musse de
chocolate coberta de nozes; a seu lado, o monumento da tarde, um bolo imenso de
claras com morangos e natas batidas, camadas de diversas naturezas sobrepostas,
todas elas boas, todas elas harmoniosas, conjugadas num macio cilindro branco
que fazia sonhar; vinham depois, deitadas num prato de porcelana chinesa, por
cima de uma suspeita de luta entre dragões, as cornucópias, recheadas com doce
de ovos. Quase se embaciam os óculos do Luisinho ao contemplar as taças de
gelado feito em casa, na máquina de manivela, com sabores de café, de morango,
de chocolate, de natas, dispersas sobre a mesa, quase livres de irem para onde
lhes apetecesse, mais para junto da travessa dos rolinhos de pão-de-forma com
atum e maionese, mais para longe do bolo enfeitado com ziguezagues de natas,
por baixo das quais se sabia estarem um pão-de-ló que não podia sem exagero ser
mais amarelo e um creme de manteiga pecaminoso Desfalece o coração de Luisinho,
imune ao caos infantil a que na sala velozmente se chega, ao passar os olhos
sobre os três pratos grandes, cama real das sanduíches aparadas,com fiambre e
fuagrá autêntico. Recapitulou, saltando a bandeja dos biscoitos de manteiga,
que é comida de miúdo e o palhaço de gelatina, transigência inaceitável ao paladar
selvagem. E demorou-se com prazer no bolo que ele já conhecia, musse cozida no
forno, coberta de chocolate. Na mesinha de apoio, em formação cerrada, os
jarros de limonada com muito gelo, sumo de laranja para os menos exigentes, chá
gelado e mazagrã para as mães.
Luisinho saiu do devaneio com a
miudagem a chegar-se à mesa. Teve um repentino movimento de irritação e
afastou, em dupla cotovelada, dois rapazinhos gémeos, que repetiram o assalto. Luisinho
acabou por se render à evidência de que o arranjo perfeito daquela mesa seria,
daí em diante, não mais que uma lembrança. Os bárbaros atacavam as sanduíches,
davam cabo do palhaço e descompunham o bolo de claras. [...]
Luísa Costa Gomes, «A janela da cozinha como argumento moral, in Contos outra vez, Cotovia, 1997, pp. 45 - 52 - CONTO COMPLETO: AQUI
Eduardo Lourenço:
[...] conto antológico [...] história de um menino bulímico, [...] para quem o mundo tem a consistência de um bolo que ele devora e por quem é devorado, alegoria cruel do nosso mundo de ricos de tudo e de tudo esfomeados»
in «Idos de Setembro», prefácio a Setembro - e outros contos, D. Quixote, 2007, p. 10
Eduardo Lourenço:
[...] conto antológico [...] história de um menino bulímico, [...] para quem o mundo tem a consistência de um bolo que ele devora e por quem é devorado, alegoria cruel do nosso mundo de ricos de tudo e de tudo esfomeados»
in «Idos de Setembro», prefácio a Setembro - e outros contos, D. Quixote, 2007, p. 10
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