quinta-feira, 24 de outubro de 2024

«arroz de amêndoas», H. A. Faciolince

- [alcançada a p. 86, de 359]

RECORTE(s)

(...) A rapariga fizera-lhe para jantar, de acordo com as minhas instruções, uma posta de bagre branco cozido, sem sal, mas com muitos coentros, duas batatinhas amarelas também cozidas, com casca (...) e uma salada de alho-francês e tomate verde com vinagre e duas gotas de azeite. Mas a mim fez-me um arroz de amêndoas, fervido em caldo de entrecosto e cebola, que libertava um aroma delicioso, pernicioso, e, em vez de mo servir no prato, como eu lhe pedira, colocou uma travessa inteira do suculento arroz bem no meio da mesa, a uma distância equidistante entre o meu prato e o do Luís. [...] 
     Depois de provar um bocadinho do seu peixe insípido, o Gordo, muito lesto, semicerrou os olhos e alongou o braço, pegou avidamente na colher de servir e, lambendo os beiços, serviu no próprio prato não uma, nem duas, mas quatro colheradas de arroz de amêndoas. Pegou no garfo com uma avidez e uma ânsia que me eram desconhecidas, e começou a encher vorazmente a boca com garfadas repletas desse aromático manjar das Arábias.[...]

[sublinhados acrescentados]

Héctor Abad Faciolince, Salvo o meu coração, tudo está bem, pp. 50-51

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

«O mármore e o sangue», Palomar

 - [outro(s) recorte(s) de uma das releituras do momento: Palomar, de I.Calvino]:

   [...] Uma devoção reverente por tudo aquilo que diz respeito à carne guia o senhor Palomar, que se prepara para comprar três bifes. Rodeado pelos mármores do talho, permanece como se estivesse num templo, consciente de que a sua existência individual e a cultura a que pertence estão condicionadas por aquele lugar.
 Uma sombra de cumplicidade viciosa paira sobre o ambiente: o [...]
     [...] Esta loja é um museu: ao visitá-la, o senhor Palomar sente. [...] 
    Esta loja é um dicionário; a língua é o sistema dos queijos no seu conjunto ; uma língua cuja . [...]

[sublinhados acrescentados; do texto «O mármore e o sangue», 3.º de  «Palomar vai ás compras» (II «sub-parte» da II parte, «PALOMAR NA CIDADE»)

Italo Calvino (1923-1985), Palomar [1983], 2021, D. Quixote, pp. 94 - 95

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

«O museu dos queijos», Palomar, Calvino

  - [outro(s) recorte(s) de uma das releituras do momento: Palomar, de I.Calvino]:

     O senhor Palomar está na bicha de uma loja de queijos, em Paris. Pretende comprar certos queijinhos de cabra que se conservam em óleo dentro de pequenos recipientes transparentes, temperados com especiarias várias e com certas ervas. [...] 
    Uma sombra de cumplicidade viciosa paira sobre o ambiente: o requinte gustativo e sobretudo o requinte olfactivo  conhecem os seus momentos de abandono, de fácil sedução, nos quais, os queijos, sobre os seus tabuleiros, parecem oferecer-se como se estivessem sobre os divãs de um lupanar. Um esgar perverso aflora no regozijo com que se avilta o objecto da gula, atribuindo-lhe epítetos infamantes: crottin, boule de moine, bouton de culotte. [...]
     [...] Esta loja é um museu: ao visitá-la, o senhor Palomar sente, tal como no Louvre .que por detrás de cada objecto exposto está a presença da civilização que lhe deu forma e que lhe toma forma. [...] 
    Esta loja é um dicionário; a língua é o sistema dos queijos no seu conjunto ; uma língua cuja morfologia regista declinações e conjugações com inumeráveis variantes e cujo léxico apresenta uma riqueza inesgotável de sinónimos, usos idiomáticos, conotações e cambiantes de significado, como todas as línguas alimentadas pela contribuição de cem dialectos. [...]

[sublinhados acrescentados; do texto «O  museu dos queijos», 2.º de  «Palomar vai ás compras» (II «sub-parte» da II parte, «PALOMAR NA CIDADE»)

Italo Calvino (1923-1985), Palomar [1983], 2021, D. Quixote, pp. 89 - 92