quarta-feira, 21 de agosto de 2024

«Galões e Cafés» (J. M. F. Jorge)

 GALÕES E CAFÉS

Nunca vi uma camisa de um branco
tão exaltante, como a daquele que
trabalhava no bar da aerogare do
Pico.
Manhã cedo dividia o azul cinzento
dos olhos pelos galões e cafés que 
servia.
Corava quando alguém reparava nele
para além do mover das moedas,
dos galões e cafés, dos pãezinhos
com queijo ou fiambre e da muita
manteiga que sempre queriam.
Mordeu os lábios
porque o emigrante que trazia grande
quantidade de dinheiro amoedado lhe
deixou com desprezo  protector os
tostões que não queria levar para 
as Américas.
Ninguém reparou nele naquela manhã
do Pico, ali, na aerogare compartimentada
de vinhas e rasteiros pinheiros.
Às vezes
um sorriso maior prendia a habilidade
das suas mãos entre galões e cafés.
Ninguém repara nele. Eu mesmo o
deixei depois de ter bebido o
café que me servira.
Troquei-o, tão facilmente, como o 
mercador português que ia para Boston a
remoer dinheiro e deprecações.
Eu próprio o deixei por um curto voo 
para a ilha Terceira.
Moverão moedas ainda os seus dedos
P'lo azul cinzento das manhãs no Pico?

João Miguel Fernandes Jorge, Antologia dos poemas, 2019, pp. 86-87
[comentado em: Frederico Pereira, Um virar de costas sedutor, 2022, p.  170]

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

«Jantar em Alcabideche» (J. M. F. Jorge)

 JANTAR EM ALCABIDECHE

Estavam os meus amigos. E, todos, mais
ou menos bêbados. As mãos brincavam com
as facas, apertavam os copos entre os
dedos, espremiam limão sobre os peixes
grelhados. Os gestos, a alegria
do encontro tornara-os tenros e desajeitados.
Mais do que dirigindo-nos a nós próprios,
fazíamo-lo para uma presença imaginária,
a secreta corrente que cada um unia; e,
mais secretamente ainda, dois e três escondia.
Depois, não há como o álcool,
o vinho branco escolhido – que não fôra
excelente – para fazer querer
ser o eu presente o verdadeiro eu;
e que, até então, sempre permanecera
escondido.
Os meus amigos falam, falam todos ao mesmo
tempo e não se entendem.
E quanto mais querem dizer mais abraços dão.
Riem e chegam mesmo a participar, felizes,
na união em cada um;
meio perdidos no seu sonho de representação
de si, não procuram mais do que provar, e
provar aos outros, uma única coisa: cada um
é o mais fiel naquele jantar,
Eu, quase sempre, permaneci alheio e
olhava-os, como vocês, leitores,
nos estão a olhar agora.

João Miguel Fernandes Jorge, Antologia dos poemas, 2019, p. 75
[comentado em: Frederico Pereira, Um virar de costas sedutor, 2022, pp. 166 - 170]

domingo, 11 de agosto de 2024

«Chocos com tinta»

 RECORTE (s) do Caderno materno:

     Eu estava bastante nervosa, para dizer a verdade, porque ainda não domino bem os costumes espanhóis [...]. Por exemplo: no nosso país, praticamente nunca se come peixe e os uruguaios detestam qualquer coisa que tenha espinhas. Aqui, ficam loucos com uma boa pescada. No Uruguai, o frango é um artigo de luxo e é muito distinto servi-lo num jantar e, aqui, é algo muito comum, quase banal [...]. Depois vem esse hábito espanhol de comer lentilhas, feijões ou grão-de-bico, mesmo nas melhores casas, algo que não ocorreria nem ao último trabalhador da exploração agrícola mais remota do Uruguai. Já para não falar de alguns pratos espanhóis que eu não me atreveria a experimentar nem que estivesse a morrer de fome no meio do deserto, como aqueles chocos com tinta que parecem mergulhados em lubrificante para automóveis, ou uns vermes que, segundo eles, são muito bons e se chamam meixões.

Carmen Posadas, Gervasio Posadas, Hoje caviar, amanhã sardinhas [2008], 2024, p. 54 - 55
[RECORTE]; [OUTRO]