quinta-feira, 18 de julho de 2024

«património micológico», Rosa Oliveira

património micológico

Teofrasto chamou-lhes plantas
        imperfeitas quase ausentes
quilómetros de comprimento
        cabeça ascendente do subterrâneo
pequenas flores coloridas
        entre seres mais próximos dos animais
do que das plantas

outrora carne de pobres
agora carne de ricos
voaram dos manuais de botânica,
habitados por criaturas mágicas
que a brisa espalha pelos
quatro cantos do mundo redondo

a multidão incógnita de apanhadores
avança sobre folhas mortas
de bosques taciturnos
prontos a espetarem
o gume
vegetal acerado
nos corações em repouso
na cesta de vime

Rosa Oliveira, DESVIO-ME DA BALA QUE CHEGA TODOS OS DIAS, 2021, p.31

sexta-feira, 12 de julho de 2024

A última refeição (A ultima lua..., M. L. Sousa)

 «Destapa as terrinas e as cuias, vê condimentado o thiof fresco que lhe mandaram do Senegal, seu pescado predilecto, aquele que entre os peixes mais tem sabor a rocha, costuma dizer, recheado de ervas e pimentas, olha guloso para o arroz amarelo nadando em óleo de palmito, para a tigela de molho avermelhado de malagueta, e sorri. De convido, descobre sob a toalha branca no meio da mesa uma gamela de mandioca, cenoura, batata-doce, inhame e repolho. Serve por ordem: arroz, verduras, peixe e molho. Come sozinho. Mastiga sofregamente, saboreia cada bocado até à raiz da saliva, toma uns goles do vinho ácido argelino, limpa os lábios com um paninho alvo, e compenetra-se como se esta fosse a sua última refeição. Arruma as espinhas num  canto do prato, cobre a sobra com uma ponta da toalha, leva a loiça à cozinha, lava-a na bandeja de plástico dentro da pia, suspende o bule sobre o carvão, serve uma xícara de café como postre e bebe a olhar para a banheira velha de esmalte coberta de folhas podres no quintal. [...]»

     Mário Lúcio Sousa,  A última lua de homem grande, 2022, p. 107;  [OUTRO]