RECORTES, final:
[...] Em nome de nada, era
hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. [...] Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.
Não
havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos
comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia
àquilo que me fazia sentir. Era um viver que eu não pagara de antemão com o
sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida.
Porque agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava o todo e as
migalhas. Quem bebia vinho, com os olhos tornava conta do leite. Quem lento
bebeu o leite, sentiu o vinho que o outro bebia. Lá fora Deus nas acácias. Que
existiam. Comíamos. Como quem dá água ao cavalo. A carne trinchada foi
distribuída. A cordialidade era rude e rural. Ninguém falou mal de ninguém
porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de colheita, e fez-se trégua.
Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente a terra.
Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e
morre, e come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi
aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A
comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. Aquilo tudo me
pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da
piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem
valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não
posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida
porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos.
Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós
somos fortes e nós comemos. Pão é amor entre estranhos.
Clarice Lispector, «A repartição dos pães»